(ENEM PPL - 2015)
Famigerado
Com arranco, [o sertanejo] calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:
– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
A linguagem peculiar é um dos aspectos que conferem a Guimarães Rosa um lugar de destaque na literatura brasileira. No fragmento lido, a tensão entre a personagem e o narrador se estabelece porque
o narrador se cala, pensa e monologa, tentando assim evitar a perigosa pergunta de seu interlocutor.
o sertanejo emprega um discurso cifrado, com enigmas, como se vê em “a conversa era para teias de aranhas”.
entre os dois homens cria-se uma comunicação impossível, decorrente de suas diferenças socioculturais.
a fala do sertanejo é interrompida pelo gesto de impaciência do narrador, decidido a mudar o assunto da conversa.
a palavra desconhecida adquire o poder de gerar conflito e separar as personagens em planos incomunicáveis.