(UERJ - 2004)
TEXTO II
CIDADE DE DEUS
Barracos de caixas de tomate, madeiras de lei, carnaúba, pinho-de-riga, caibros cobertos, em geral, por telhas de zinco ou folhas de compensados. Fogueiras servindo de fogão para fazer o mocotó, a feijoada, o cozido, o vatapá, mas, na maioria das vezes, para fazer aquele arroz de terceira grudado, angu duro ou muito ralo, aqueles carurus catados no mato, mal lavados, ou simplesmente nada. Apenas olhares carcomidos pela fome, em frente aos barracos, num desespero absoluto e que por ser absoluto é calado. Sem fogueira para esquentar ou iluminar como o sol, que se estendia por caminhos muitas vezes sem sentido algum para os que não soltavam pipas, não brincavam de pique-pega e não se escondiam num pique-esconde.
Os abismos têm várias faces e encantam, atraem para o seu seio como as histórias em quadrinhos que chegavam ao morro compradas nas feiras da Maia Lacerda e do Rio Comprido, baratas como a tripa de porco que sobrava na casa do compadre maneiro que nem sempre era compadre de batismo. Era apenas o adjetivo, usado como substantivo, sinônimo de uma boa amizade, de um relacionamento que era tecido por favores, empréstimos impagáveis e consideração até na hora da morte.
São as pessoas nesse desespero absoluto que a polícia procura, espanca com seus cassetetes possíveis e sua razão impossível, fazendo com que elas, com seus olhares carcomidos pela fome, achem plausíveis os feitos e os passos de Pequeno e de sua quadrilha pelos becos que, por terem só uma entrada, se tornam becos sem saídas, e achem, também, corriqueira essa visão de meia cara na quina do último barraco de cada beco de crianças negras ou filhas de nordestinos, de peito sem proteção, pé no chão, shorts rasgados e olhar já cabreiro até para o próprio amigo, que, por sua vez, se tornava inimigo na disputa de um pedaço de sebo de boi achado no lixo e que aumentaria o volume da sopa, de um sanduíche quase perfeito nas imediações de uma lanchonete, de uma pipa voada, ou de um ganso dado numa partida de bola de gude.
Lá ia Pequeno, senhor de seu desejo, tratando bem a quem o tratava bem, tratando mal a quem o tratava mal e tratar mal era dar tiros de oitão na cabeça para estuporar os miolos.
Os exterminadores pararam na tendinha do Zé Gordo para tomar uma Antarctica bem gelada, porque esta era a cerveja de malandro beber. Pequeno aproveitou para perguntar pelos amigos que fizera no morro, pelas tias que faziam um mocotó saboroso nos sábados à tarde, pelos compositores da escola.
- Qualé, Zé Gordo, se eu te der um dinheiro, tua mulher faz um mocotó aí pra gente?
- Então, meu cumpádi!
Pequeno deu a quantia determinada pela esposa de Zé Gordo, em seguida retornaram à patrulha que faziam.
(LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.)
Algumas preposições podem expressar sentidos variados e introduzir termos com funções sintáticas diversas.
No exemplo "Pequeno deu a quantia determinada pela esposa de Zé Gordo" (texto II), a preposição POR tem características semânticas e sintáticas idênticas às da seguinte alternativa
"caibros cobertos, em geral, POR telhas de zinco".
"num desespero absoluto que POR ser absoluto é calado".
"que se estendia POR caminhos muitas vezes sem sentido algum".
"becos que, POR terem uma só entrada, se tornam becos sem saídas".