(UFPR - 2019 - 2ª FASE) O texto abaixo é uma adaptação do texto original de Ricardo Abramovay, publicado em 2017, como prefácio ao livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, de Tom Slee.
Uber e Airbnb*, entre outros aplicativos da chamada sharing economy (economia do compartilhamento), apregoam que as novas tecnologias estão nos levando a um mundo maravilhoso. Um mundo de vizinhos ajudando vizinhos, com cidades onde todos se respeitam, com sistemas de transporte eficientes, enfim, o retorno da confiança na boa-fé dos seres humanos, tudo isso possibilitado por um smartphone com conexão à internet – uma verdadeira revolução na palma da mão. Será?
A explosão da cultura digital durante o Século XXI revigorou os mais importantes ideais emancipatórios, combalidos pela queda do muro de Berlim. As pessoas e as comunidades passariam a dispor dos meios técnicos que lhes permitiriam estabelecer comunicação direta umas com as outras. A informação, os bens e os serviços poderiam ser oferecidos de forma eficiente sem que as condições objetivas de sua produção estivessem nas mãos de grandes empresas. Alguns autores chegaram a vincular a abundância trazida pela revolução digital ao próprio fim do capitalismo. A sharing economy, cujas expressões mais emblemáticas são a Wikipédia e os softwares livres, exprimiria a capacidade humana de cooperação, não apenas entre pessoas que se conhecem, num círculo limitado por laços de parentesco e amizade, mas de forma anônima, impessoal e massificada. As bases materiais para
a transição do reino da necessidade para o de liberdade pareciam asseguradas.
Não demorou muito para ficar claro que esta narrativa edificante subestimava a mais importante transformação do capitalismo do Século XXI: a emergência da empresa-plataforma. O aumento na capacidade de processar, coletar, armazenar e analisar dados foi de tal magnitude que seu custo, que era de onze dólares por gigabyte em 2000 caiu para US$ 0,02 em 2016. Esta foi uma das bases objetivas não só para que Google e Facebook estivessem entre as mais poderosas empresas do mundo, mas também para que um conjunto cada vez mais amplo de bens e serviços fosse oferecido não mais por empresas ou conglomerados especializados, mas por plataformas que, a custo quase zero, tinham o poder de conectar imediatamente consumidores e varejistas, reduzindo os custos envolvidos em suas transações.
Mas a aura de esperança com que a sharing economy – que inclui gigantes digitais como Uber, Lyft, Task Rabit – foi encarada em seus primórdios está sendo desmistificada: muito longe de exprimir a cooperação direta entre indivíduos, o suposto compartilhamento deu lugar à formação de gigantes corporativos cujo funcionamento é regido por algoritmos opacos que em nada se aproximam da utopia cooperativista estampada em suas versões originais. Sob a retórica do compartilhamento, escondem-se a acumulação de fortunas impressionantes, a erosão de muitas comunidades, a precarização do trabalho e o consumismo.
O AirBnb, por exemplo, acabou por estimular que, em cidades turísticas importantes, como Barcelona, Paris e Amsterdã, as pessoas vendessem seus domicílios a empresas que operavam como se fossem indivíduos. Ao mesmo tempo, em muitas destas cidades o turismo se expandiu muito além dos limites da rede hoteleira. O resultado é que as regiões centrais das cidades atingidas, cujo atrativo era exatamente o de conciliar a beleza arquitetônica com o cotidiano de quem ali vivia, corriam o risco de serem convertidas em cenários de Disneylândia.
A ideia de que se eu precisar de algo posso contar com a ajuda dos outros e que isso vai gerar sentimentos e práticas de reciprocidade acabou se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos e sem qualquer segurança previdenciária. Num ambiente em que os sindicatos estão cada vez mais fracos e os direitos trabalhistas sob aberta contestação, os resultados são devastadores. A utopia de que a relação peer to peer ampliaria o bem-estar, reduziria o desperdício e traria significado humano para as relações econômicas, tão fortemente cultivada pelo discurso do Vale do Silício, transformou-se no seu contrário.
Uma das mais dramáticas consequências do capitalismo de plataforma é a drástica redução da responsabilidade socioambiental corporativa. Embora as plataformas sejam as maiores beneficiárias das operações comerciais que intermedeiam, elas renunciam a qualquer responsabilidade sobre suas consequências. E os gigantes digitais que hoje aparecem como expressão emblemática do capitalismo de plataforma insistem na narrativa de que são simples intermediários e que a responsabilidade pela relação comercial entre os que oferecem os bens e os serviços e os que os demandam não lhes cabe.
É claro que o avanço cada vez maior da conectividade e dos meios para que ela chegue ao maior número de pessoas pode ser benéfico. Mas a distância entre conexão e bem-estar social será tanto maior quanto mais poderosos forem os gigantes digitais que determinam as regras sob as quais o maior bem comum criado pela inteligência humana, a internet, funciona. Contrariamente à crença dos protagonistas dominantes da sharing economy, a revolução digital só vai melhorar a vida das sociedades contemporâneas se ela se apoiar em real abertura, em participação transparente e em redução das desigualdades. * Serviço que permite que pessoas do mundo inteiro ofereçam suas casas para usuários que buscam acomodações temporárias mais em conta em qualquer lugar do mundo.
Faça um resumo desse texto, que deverá: