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(UFU - 2006)Ni uma bela cidade que vive, hoje, sob

(UFU - 2006)

“Niã é uma bela cidade que vive, hoje, sob regime democrático. No passado remoto, quando os senhores de terra e de escravos mandavam em tudo, um punhado de homens destemidos decidiu lutar para instituir na cidade o respeito às leis, perante as quais todos seriam iguais. A luta foi dura e sangrenta, resultando em perseguições e mortes. Quase todos os integrantes desse grupo rebelde foram executados; apenas um deles sobreviveu e conseguiu deixar a cidade dentro de um saco de aniagem. Os chefes militares aproveitaram-se da rebelião para dar o golpe e tomar o poder.

Assim, durante duas décadas, reinou em Niã a paz dos cemitérios. Os donos de terra tiveram de ceder parte de suas propriedades aos novos senhores, enquanto os descontentes −que decerto os havia− nada diziam, pois qualquer crítica ao regime provocava brutais represálias. Por isso, segundo se conta, alguns mais revoltados, na ânsia de manifestar seu descontentamento, cavavam buracos no quintal de sua casa, metiam a cabeça neles até o pescoço e berravam insultos e impropérios contra a ditadura militar. Há quem afirme que esses gritos de raiva entranhando-se no solo fizeram nascer estranhos arbustos, de folhas afiadas feito navalhas, e que dessas navalhas se valeu a população para −numa noite de tórrido e sufocante verão, quando o céu ardia feito um tacho incandescente emborcado sobre Niã− invadir os quartéis e cortar os colhões de todos os generais e, em seguida, decapitá-los com a ajuda da tropa sublevada. Parece que, no entanto, a verdade histórica é outra: a rebelião teria surgido aos poucos, quando as pessoas começaram a cochichar em cozinhas e mictórios públicos, dando início à secreta mobilização que, de repente, como uma onda gigante (um tsunami), invadiu os quartéis e as mansões dos poderosos, afogando a todos.

O líder rebelde, que se havia exilado e que voltara clandestinamente, foi quem encabeçou a “rebelião do cochicho”, pois com este nome passou ela à história. Derrotada a ditadura, o líder propôs que se instituíssem na cidade eleições livres para todos os cargos de governo, dos deputados ao governador. Criaram-se os partidos, e as eleições culminaram com a vitória do líder revolucionário. Ele, então, deu início a grandes mudanças −com a desapropriação de parte das terras para a reforma agrária e com mais recursos para a indústria− que fizeram crescer a classe operária e, com isso, surgirem sindicatos mais fortes. Emergem, então, líderes operários, que passam a atuar na vida política de Niã. Aprovou-se uma legislação que consagrava os direitos básicos dos trabalhadores. A cidade viveu, então, o melhor momento de sua história, com a multiplicação de escolas, bibliotecas públicas, hospitais, serviço de saneamento e proteção ambiental.

Os anos se passaram, Niã continuou a crescer e cada vez mais rapidamente, com a migração de pessoas que até então viviam no campo ou nas cidades vizinhas. Esse aumento inesperado da população alterou a estrutura urbana de Niã, uma vez que, como cogumelos, se multiplicavam os casebres de zinco e papelão que foram brotando em torno da cidade até aprisioná-la num cinturão de miséria e violência. Logo apareceram políticos que se voltaram para essas áreas pobres e nela desenvolveram uma pregação oportunista que lhes valeu muitos votos. Prometiam àquela gente necessitada casas, alimentos e transporte quase de graça. Um deles conseguiu elegerse governador, mas não teve futuro, já que o que prometera era impossível de cumprir. Pouco depois, um líder operário, que se destacara por seu carisma, conseguiu chegar ao poder para a euforia da maior parte da população, convencida de que, enfim, estando à frente do governo um homem nascido do povo, seus problemas seriam resolvidos. “Ele disse que, em seu governo, ninguém passaria fome nem moraria ao relento”, repetiam os seus seguidores mais ardorosos. Mas a euforia do dia da posse não durou muito: o governador revelou-se um boquirroto, que mais discursava que trabalhava. Acostumado a criticar o governo, não se deu conta de que era, então, governo e, para o espanto de todos, clamava pela solução dos problemas como se não fosse ele o responsável por enfrentá-los. Em face disso, o otimismo popular transformou-se, primeiro, em desencanto e, depois, em irritação e revolta, enquanto o governo, para contentar seus aliados, aumentava os gastos oficiais e escorchava o povo com novos impostos. A revolta agravou-se com a notícia de que a corrupção grassava no governo e na Câmara de Deputados. O povo enfureceu-se ainda mais porque os deputados aprovaram novos gastos em benefício próprio. As tentativas de deter o descalabro de nada valeram, uma vez que os corruptos contavam com a complacência de seus colegas, e o Judiciário, fazendo vista grossa, não punia ninguém. Só a imprensa se negava a aceitar semelhante situação, mas as denúncias caíam no vazio. Parecia impossível escapar de semelhante impasse. Não obstante, nestas últimas semanas, correm boatos de que, de novo, nas cozinhas, nos mictórios públicos e nos mercados de peixe, o povo voltou a cochichar, deixando de orelha em pé os donos do poder, ainda que até agora ninguém tenha pronunciado a palavra tsunami.”

FERREIRA GULLAR. Folha de S. Paulo de 22 de maio de 2005.

Em relação ao texto, pode-se afirmar que

A

é predominantemente descritivo, uma vez que descreve características da cidade de Niã.

B

é predominantemente narrativo, porque apresenta um relato dos principais momentos políticos da cidade de Niã.

C

é predominantemente argumentativo, porque o autor expõe idéias, explicações e opiniões a respeito de determinado assunto, por meio de uma narrativa.

D

é um misto de texto descritivo e narrativo, porque descreve o povo de Niã e relata suas façanhas.