(UNESP - 2022 - 2ª FASE) Para responder às questões de 09 a 11, leia a crônica “Elegia do Guandu”, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 2 de novembro de 1974.
E se reverenciássemos neste 2 de novembro os mortos do Guandu, que descem a correnteza, a caminho do mar — o mar que eles não alcançam, pois encalham na areia das margens, e os urubus os devoram?
Perdoai se apresento matéria tão feia, em dia de flores consagradas aos mortos queridos. Estes não são amados de ninguém, ou o são de mínima gente. Seus corpos, não há quem os reclame, de medo ou seja lá pelo que for.
Se algum deles tem sorte de derivar pela restinga da Marambaia e ali é recolhido por pescadores — ah, peixe menos desejado — ganha sepultura anônima, que a piedade dos humildes providencia. Mas não é prudente pescar mortos do Guandu: há sempre a perspectiva de interrogatórios que fazem perder o dia de trabalho, às vezes mais do que isso: a liberdade, que se confisca aos suspeitos e aos que explicam mal suas pescarias macabras.
São marginais caçados pela polícia ou por outros marginais, são suicidas, são acidentados? Difícil classificá-los, se não trazem a marca registrada dos trucidadores ou estes sinais: mãos amarradas, amarrado de vários corpos, pesos amarrados aos pés. Estes últimos são mortos fáceis de catalogar, embora só se lhes vejam as cabeças em rodopio à flor d’água, mas os que vêm boiando e fluindo, fluindo e boiando, em sonho aquático deslizante, estes desesperaram da vida, ou a vida lhes faltou de surpresa?
Os mortos vão passando, procissão falhada. Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante. É espetáculo para se ver da janela de moradores de Itaguaí, assistentes ribeirinhos de novela de espaçados capítulos. Ver e não contar. Ver e guardar para conversas íntimas: — Ontem, na tintura da madrugada, passaram três garrafinhas. Eu vi, chamei a Teresa pra espiar também...
Garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos pés, e não mais como ficou escrito em livros de cartório. O garrafinha no 1 não é diferente do garrafinha no 2 ou 3. Foram todos nivelados pelo Guandu. Como frascos vazios, de pequeno porte e nenhuma importância, lá vão rio abaixo, Nova Iguaçu abaixo, rumo do esquecimento das garrafas e dos crimes que cometeram ou não cometeram, ou dos crimes que neles foram cometidos.
[...]
O Guandu não responde a inquéritos nem a repórteres. Não distingue, carrega. Não comenta, não julga, não reclama se lhe corrompem as águas; transporta. Em sua impessoalidade serve a desígnios vários, favorece a vida que quer se desembaraçar da morte, facilita a morte que quer se libertar da vida. Pela justiça sumária, pelo absurdo, pelo desespero.
Mas não é ao Guandu que cabe dedicar uma elegia, é aos mortos do Guandu, nos quais ninguém pensa no dia de pensar os e nos mortos. Os criminosos, os não criminosos, os que se destruíram, os que resvalaram. Mortos sem sepultura e sem lembrança. Trágicos e apagados deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal.
(Carlos Drummond de Andrade. Os dias lindos, 2013.)
O termo sublinhado em “Estes últimos são mortos fáceis de catalogar, embora só se lhes vejam as cabeças em rodopio à flor d’água” (4o parágrafo) pertence à mesma classe gramatical do termo sublinhado em:
“Mas não é prudente pescar mortos do Guandu” (3o parágrafo)
“Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante” (5o parágrafo)
“Difícil classificá-los, se não trazem a marca registrada dos trucidadores” (4o parágrafo)
“É espetáculo para se ver da janela de moradores de Itaguaí” (5o parágrafo)
“Estes não são amados de ninguém, ou o são de mínima gente” (2o parágrafo)