(ENEM - 2010)
Negrinha
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma – "dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral", dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva.
[...]
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de negro igual.
LOBATO, M. Negrinha. In: MORICONE, I. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000 (fragmento).
A narrativa focaliza um momento histórico-social de valores contraditórios. Essa contradição infere-se, no contexto, pela
falta de aproximação entre a menina e a senhora, preocupada com as amigas.
receptividade da senhora para com os padres, mas deselegante para com as beatas.
ironia do padre a respeito da senhora, que era perversa com as crianças.
resistência da senhora em aceitar a liberdade dos negros, evidenciada no final do texto.
rejeição aos criados por parte da senhora, que preferia tratá-los com castigos.