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VestibularEdição do vestibular
Disciplina

(IME - 2017/2018 - 2 FASE )A CONDIO HUMANAA Vita A

(IME - 2017/2018 - 2ª FASE )

A CONDIÇÃO HUMANA

A Vita Activa e a Condição Humana

          Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata-se de atividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra.

          1O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida.

          O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. 2Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.

          3A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). 4Mas, em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até mesmo em Gênesis (macho e fêmea Ele os criou), se entendermos que esta versão da criação do homem diverge, em princípio, da outra segundo a qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – a ele, e não a eles, de sorte que a pluralidade dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação5. 6A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsíveis quanto a natureza e a essência de qualquer outra coisa. 7A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.

          As três atividades e suas respectivas condições têm íntima relação com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. 8O trabalho e seu produto, o artefato humano, 9emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do corpo humano. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história. 10O labor e o trabalho, bem como a ação, têm também raízes na natalidade, na medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo para 11o constante influxo de recém-chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los em conta. 12Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade. 13Além disto, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.

          A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. É por isso que os homens, independentemente do que façam, são sempre seres condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981. pp. 15-17 (texto adaptado).

5Quando se analisa o pensamento político pós-clássico, muito se pode aprender verificando-se qual das duas versões bíblicas da criação é citada. Assim, é típico da diferença entre os ensinamentos de Jesus de Nazareth e de Paulo o fato de que Jesus, discutindo a relação entre marido e mulher, refere-se a Gênesis 1:27 “Não tendes lido que quem criou o homem desde o princípio fê-los macho e fêmea” (Mateus 19:4), enquanto Paulo, em ocasião semelhante, insiste em que a mulher foi criada “do homem” e, portanto, “para o homem”, embora em seguida atenue um pouco a dependência: “nem o varão é sem mulher, nem a mulher sem o varão” (1 Cor.11:8-12). A diferença indica muito mais que uma atitude diferente em relação ao papel da mulher. Para Jesus, a fé era intimamente relacionada com a ação; para Paulo, a fé relacionava-se, antes de mais nada, com a salvação. Especialmente interessante a este respeito é Agostinho (De civitate Dei xii.21), que não só desconsidera inteiramente o que é dito em Gênesis 1:27, mas vê a diferença entre o homem e o animal no fato de ter sido o homem criado unum ac singulum, enquanto se ordenou aos animais que “passassem a existir vários de uma só vez” (plura simul iussit existere). Para Agostinho, a história da criação constitui boa oportunidade para salientar-se o caráter de espécie da vida animal, em oposição à singularidade da existência humana.

 

(Ime 2018)  13 de junho... Vesti as crianças e eles foram para a escola. Eu fui catar papel. No frigorifico vi uma mocinha comendo salchichas do lixo.

¯ Você pode arranjar um emprego e levar uma vida reajustada.

Ela perguntou-me se catar papel ganha dinheiro. Afirmei que sim. Ela disse-me que quer um serviço para andar bem bonita. Ela está com 15 anos. Época que achamos o mundo maravilhoso. Época em que a rosa desabrocha. Depois vai caindo pétala por pétala e surgem os espinhos. Uns cançam da vida, suicidam. Outros passam a roubar. (…) Olhei o rosto da mocinha. Está com boqueira.

... Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.

A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro quando as águas invadiu os armazéns e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada2.

São Paulo: Ática, 2014. p. 60.

2Quarto de despejo é uma edição dos diários de Carolina Maria de Jesus, migrante do Sacramento, Minas Gerais, onde estudou apenas dois anos numa escola primária. Mãe solteira e moradora da primeira grande favela de São Paulo, a Canindé, que foi desocupada em meados dos anos 1960 para a construção da Marginal do Tietê. Seu diário se transformou num Best-seller traduzido para 13 línguas (trecho da apresentação escrita pelo jornalista Audálio Dantas na obra referenciada).

Tomando por base os quatro textos apresentados nesta prova, produza um texto dissertativo-argumentativo discorrendo sobre a ação como prática fundadora das sociedades. Reflita sobre a condição dos, nas palavras da autora do texto A condição humana, “recém-chegados” ao mundo, tanto em sua condição inicial de “estranhos” quanto nos condicionamentos adquiridos ao longo da existência. Em sua reflexão, leve em conta que esses recém-chegados, sejam eles oriundos de classes mais ou menos abastadas, deixarão suas marcas no mundo e que essas, na maior parte dos casos, serão um reflexo de uma repetição de práticas arraigadas entre humanos.