(IME - 2018/2019 - 2ª FASE)
Texto 2
O ELEFANTE
1 | Fabrico um elefante |
de meus poucos recursos. | |
Um tanto de madeira | |
tirado a velhos móveis | |
5 | talvez lhe dê apoio. |
E o encho de algodão, | |
de paina, de doçura. | |
A cola vai fixar | |
suas orelhas pensas. | |
10 | A tromba se enovela, |
é a parte mais feliz | |
de sua arquitetura. | |
Mas há também as presas, | |
dessa matéria pura | |
15 | que não sei figurar. |
Tão alva essa riqueza | |
a espojar-se nos circos | |
sem perda ou corrupção. | |
E há por fim os olhos, | |
20 | onde se deposita |
a parte do elefante | |
mais fluida e permanente, | |
alheia a toda fraude. | |
Eis o meu pobre elefante | |
25 | pronto para sair |
à procura de amigos | |
num mundo enfastiado | |
que já não crê em bichos | |
e duvida das coisas. | |
30 | Ei-lo, massa imponente |
e frágil, que se abana | |
e move lentamente | |
a pele costurada | |
onde há flores de pano | |
35 | e nuvens, alusões |
a um mundo mais poético | |
onde o amor reagrupa | |
as formas naturais. | |
Vai o meu elefante | |
40 | pela rua povoada, |
mas não o querem ver | |
nem mesmo para rir | |
da cauda que ameaça | |
deixá-lo ir sozinho. | |
45 | É todo graça, embora |
as pernas não ajudem | |
e seu ventre balofo | |
se arrisque a desabar | |
ao mais leve empurrão. | |
50 | Mostra com elegância |
sua mínima vida, | |
e não há cidade | |
alma que se disponha | |
a recolher em si | |
55 | desse corpo sensível |
a fugitiva imagem, | |
o passo desastrado | |
mas faminto e tocante. | |
Mas faminto de seres | |
60 | e situações patéticas, |
de encontros ao luar | |
no mais profundo oceano, | |
sob a raiz das árvores | |
ou no seio das conchas, | |
65 | de luzes que não cegam |
e brilham através | |
dos troncos mais espessos. | |
Esse passo que vai | |
sem esmagar as plantas | |
70 | no campo de batalha, |
à procura de sítios, | |
segredos, episódios | |
não contados em livro, | |
de que apenas o vento, | |
75 | as folhas, a formiga |
reconhecem o talhe, | |
mas que os homens ignoram, | |
pois só ousam mostrar-se | |
sob a paz das cortinas | |
80 | à pálpebra cerrada. |
E já tarde da noite | |
volta meu elefante, | |
mas volta fatigado, | |
as patas vacilantes | |
85 | se desmancham no pó. |
Ele não encontrou | |
o de que carecia, | |
o de que carecemos, | |
eu e meu elefante, | |
90 | em que amo disfarçar-me. |
Exausto de pesquisa, | |
caiu-lhe o vasto engenho | |
como simples papel. | |
A cola se dissolve | |
95 | e todo o seu conteúdo |
de perdão, de carícia, | |
de pluma, de algodão, | |
jorra sobre o tapete, | |
qual mito desmontado. | |
100 |
Amanhã recomeço. |
ANDRADE, Carlos Drummond de. O Elefante. 9ª ed. - São Paulo: Editora Record, 1983.
No texto 2, considerando o elefante fabricado artesanalmente como uma alegoria para falar da arte, mandar o elefante à rua aponta para um desejo de
divulgação daquilo que até então era privado e íntimo.
invisibilidade da coisa criada.
anonimato e silenciamento, já que há nas ruas um burburinho incessante que acaba por silenciar tudo o que nela transita.
fuga às responsabilidades do artista, pois o poeta sucumbe diante de sua inspiração.
banalização dos sentimentos que inspiraram o poeta a construir seu elefante.