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Disciplina

(IME 2022/2023 - 2 fase)Texto 1Erico Verissimo (19

(IME 2022/2023 - 2ª fase)

Texto 1

 

Erico Verissimo (1905 – 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que começou na década de 1930. Sua obra mais conhecida é o “Tempo e o Vento”, uma trilogia de romances, na qual ele narra a história de um clã familiar, os Terra Cambarás, de 1745 até 1945, tendo como contexto à formação da fronteira nacional na região sul. O espaço central desses romances é a cidade fictícia de Santa Fé, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto “O Sobrado”, que integra o romance “O Continente”, versa sobre o chefe do clã, Licurgo Cambará, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao clã oposto, dos Amaral. Na obra, é abordado um episódio da Revolução Federalista (1893 – 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da República e outro que desejava uma maior autonomia aos estados.

 

O SOBRADO

 

Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e
  deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido
  talvez pudesse até escutar o sereno na solidão.
       Agachado atras dum muro, José Lírio preparava-se para a última corrida. Quantos passos dali até a igreja?
Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no
  alto duma das torres da Matriz. “Tenente Liroca”, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, “suba pro alto do
  campanário e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se alguém aparecer pra tirar água do poço, faça fogo
  sem piedade.”
       José Lírio olhava a rua. Dez passos até a igreja. Mas quantos passos até a morte? Talvez cinco... ou
10  dois. Havia um atirador infernal na água-furtada do Sobrado, à espreita dos imprudentes que se aventurassem
  a cruzar a praça ou alguma rua a descoberto
       Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca não queria que ninguám percebesse que ele
  hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo.
  Estava metido naquela revolução porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas não se habituava nunca
  ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora — um medo que lhe vinha de baixo
  das tripas, e lhe subia pelo estomago até a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braços, a
  vontade. Medo é doença; medo é febre.
  Engraçado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto
  de salmoura.
20       O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munição da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia
  atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria até uma provocação bonita. Vamos,
  Liroca, honra o lenço encarnado. Mas qual! Lá estava aquela sensação fria de vazio e enjoo na boca do
  estômago, o minuano gelado nos miúdos.
  Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da mãe, pois as gentes do lado paterno eram corajosas
25  O avô de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revolução, havia pouco mais dum ano
  tombara estripado numa carga de lanc¸a, mas lutando ate o ´ ultimo momento.
       “Lírio é macho”, murmurou Liroca para si mesmo. “Lírio é macho.” Sempre que ia entrar num combate,
  repetia estas palavras: “Lírio é macho”
       Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta
30  seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorrê-los nuns cinco segundos, quando muito. Era só
  um upa e estava tudo terminado. Fez avançar cautelosamente a cabeça e, com a quina do muro a tocar-lhe o
  meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que lá estava,
  do outro lado da praça, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros
  de fortaleza. Havia no casarão algo de terrivelmente humano que fez o coração de José Lírio pulsar com mais
35  força.
       Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente
  e chefe político republicano do município, encastelara-se em sua casa com toda a família e um grupo de
  correligionários, e de lá ainda oferecia resistência. Enquanto o Sobrado não capitulasse, os revolucionários
  não poderiam considerar-se senhores de Santa Fé, pois os atiradores da água-furtada praticamente dominavam
40  a praça e as ruas em derredor.
       Por alguns instantes José Lírio ficou a mirar a fachada do casarão, e de repente a lembrança de que Maria
  Valéria estava lá dentro lhe varou o peito como um pontaço de lança. Soltou um suspiro fundo e entrecortado,
  que foi quase um soluço. De novo se encolheu atrás do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse
  chegar a salvo até a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanário
45  pela porta da sacristia.
       Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta.
  Uma bala na cabeça. Pronto! Cais de cara no chão e está tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando
  a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento não dói. Depois é que vem a ardência, como se ela fosse
  de ferro em brasa. Mas quando o ferimento é mortal não se sente nada. O pior é arma branca. Vamos, Liroca
50  Dez passos. Cinco segundos. Lírio é macho, Lírio é macho.
       José Lírio continuava imóvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele
  trecho à luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na
  água-furtada do sobrado um clarão acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue começou a
  borbotar-lhe do peito e a empapar a terra.
55  “Vamos, menino!” Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lírio. Sua
  voz áspera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infância em que Liroca faltara à escola e ao chegar a
  casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mão. “Agora tu me pagas, salafrário!” Liroca saíra
  a correr como um doido na direc¸ao do fundo do quintal. “Espera, poltrão!” E de repente o que o velho Maneco
 

tinha nas mãos não era mais o chicote, e sim as próprias vísceras, que lhe escorriam moles e visguentas da

60  ferida do ventre. “Vamos, covarde!”
       De súbito, como tomado dum demônio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr
  na direção da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para
  o Sobrado, numa voz frenética de quem pede socorro, gritou: “Pica-paus do inferno! Sou homem!”. Continuou a
  correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com
65  o peito colado à terra, o coração a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama
  umida de sereno. “A la fresca!”, murmurou ele. “A la fresca!”
       Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua
  saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trêmulo desejo
  de chorar.

 

VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4ª ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado).

 

 

O texto 1 utiliza do repertorio linguístico-cultural do Rio Grande do Sul, cujo sentido pode ser inferido por pessoas de outras regiões do país a partir dos conhecimentos previos do leitor e do contexto de uso da palavra. Em vista disso, identifique o vocbulo que pode substituir a palavra “upa” (linha 31), sem prejuÍzo do texto:

A

átimo.

B

bala.

C

projetil.

D

salto.

E

treco.