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VestibularEdição do vestibular
Disciplina

Texto 1Mia Couto e o pseudnimode Antonio EmlioLeit

Texto 1

Mia Couto e o pseudônimo de Antonio Emílio Leite, nascido em Moçambique em 1955. Em muitas obras, Mia Couto reinventa a língua portuguesa por meio de um poderoso léxico poético, sob a influência dos falares das várias regiões do País, criando um novo modelo de narrativa africana, imbuído às vezes de uma cosmovisão mítica. Terra Sonambula, seu primeiro romance, publicado em 1992, conta as peripécias e provações do menino Muidinga e do velho Tuahir, que, fugindo da guerra civil após a descolonização de Moçambique, acham abrigo em um ônibus abandonado em uma estrada. Muidinga aí encontra os cadernos de Kindzu, cujos relatos estão relacionados ao passado do menino e da vida comunitária de Moçambique. O título da obra faz referência a instabilidade do País e, portanto, a falta de repouso e de paz de uma terra que permanece “sonâmbula”.

O REGRESSO DE MATIMATI

1 Farida me dera um gosto novo de viver. Até ali me distrairá nesse estar contente sem nenhuma felicidade. Depois de Farida me tornei encontrável, em mim visível. Muitas vezes me avisei do perigo desse amor. Nenhum de nos podia esperar muito: como ela, eu era apenas passageiro esquecido da qual viagem. Mas Farida me mandava calar, dedo sorrindo sobre os lábios. Eu temia sua inocência: ela estava desamparada, sem ninguém a

5 quem recorrer. Eu sentia o mesmo, mas de uma outra maneira. Talvez porque não tivesse um filho, não tivesse ninguém. Minha única posse era o medo. Sim, foi para escapar do medo que saíra de minha pequena vila. Porque esse sentimento já totalmente me ocupava: eu passeava com o medo na rua, dormia com o medo em casa. Quem vive no medo precisa um mundo pequeno, um mundo que pode controlar. Nosso mundo, meu e de Farida, tinha agora o tamanho de um navio. Para mim, aquele era apenas um passageiro momento. Para Farida,

10 aquilo era o imutável cumprir de um destino. Minha companheira comentava quase nada as realidades da vida corrente. Fantasiática, tudo para ela ocorria no além-visto. Só uma vez beliscou o assunto da guerra. Inquiria-me como se habitasse um outro país: — Essa guerra algum dia ha de acabar? Acenei que sim. Mas meu coração se pequenou, constreitinho. Farida queria conhecer mais: saber o motivo ˜

15 da guerra, a razão daquele desfile de infinitos lutos. Lembrei as palavras de Surendra: tinha que haver guerra, tinha que haver morte. E tudo era para quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia ˆ nascer do trabalho. So o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem ` esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre os outros. — Pode acabar no país, Kindzu. Mas para nos, dentro de nós essa guerra nunca mais vai terminar.

20 Farida não voltou a falar da guerra. Parecia não ter forca para enfrentar as matanças distantes. Simplesmente parasse aquela discórdia dentro de si, aquela angustia que lhe tirava o sossego. Era só essa pequenina paz que ela sonhava. Quando, por fim, me despedi, ela me pediu: — La, em Matimati, nunca fale de meu nome. Eles me odeiam. Já em meu concho, remando para terra, surgia clara a razão do meu retorno ˜ a costa. Eu procurava apagar o `

25 fogo que devorava aquela mulher. Nem sequer era generosidade. Precisava salvar Farida porque ela me salvava da miséria de existir pouco. Havia, por fim, um alguém que não estava metido no mesmo lodo em que todos chafundavamos, alguém que mantinha a esperanc¸a, louca que fosse. Farida, ao menos, tinha uma ilha com um inviável farol, um barco que viria de la onde habitam os anjonautas. Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como são nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de paixão.

30 puxava um novo lustro aquela terra em ruínas. Aquelas visões, dias antes, já tinham estado em meus olhos. Porem, agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembleia de belezas. Desembarquei sem conhecer por onde começar a busca. Desta vez não havia tanta gente na praia. A multidão se tinha dispersado. Seria por consequência da ameaça das autoridades? Fui subindo por um caminhozito descalço, um trilho tao estreito que mesmo duas serpentes não podiam namorar. A vila era menor do que parecia, suas casas estavam mais ˜

35 inteiras que as da minha terra. Havia, no entanto, excessivos refugiados. Dormiam nas ruas, nos passeios. Por todo lado, se viam corpos estendidos, esteirados ao sol. Eu circulava por ali, divagante, devagaroso. Como começar para chegar ao filho de Farida? Procurar Irma Lucia? Não, ela pouco adiantaria. O menino saíra da Missao rumo aos matos. O melhor seria encontrar tia Euzinha, ela saberia das pistas que Gaspar rumara. Mas, Euzinha: onde seria seu atual paradeiro? Estaria

40 entre aqueles deslocados da vila? Ou resistira no campo, na sua casinha-natal? Resolvi não resolver nada, deixar que a resposta acontecesse sozinha. Restava-me um tempo. Farida prometera não abandonar o barco antes que eu trouxesse novidades de seu filho. Mesmo que viesse gente para resgatar o navio, mesmo assim ela aguardaria por mim. Trocamos jura contra jura.

COUTO, Mia. Terra Sonambula.

Sao Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 103- 105 (texto adaptado).

E correto afirmar que o texto 1 - “O regresso de Matimati”:

A

(A) expressa a ideia de que a guerra enfrentada pelos personagens se deve a disputas de cunho etnico-racial, próprias da região há séculos.

B

(B) exprime a tese segundo a qual uma guerra que dura tanto tempo se explica pela possibilidade de extorsão dos bens alheios.

C

(C) denuncia o quanto as pessoas sao intolerantes umas em relacão às outras, apesar da defesa de um discurso antibelicista.

D

(D) revela o quanto a guerra esta inscrita na própria natureza humana, já que não poderia jamais acabar dentro dos personagens.

E

(E) enfatiza o aspecto fundamental de um conflito armado, de desencadear o caos e a destruição como o reverso da ordem e da lei.