(INSPER 2012) A terceira margem do rio Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informao. Do que eu mesmo me alembro, ele no figurava mais estrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. S quieto. Nossa me era quem regia, e que ralhava no dirio com a gente - minha irm, meu irmo e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a srio. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhtico, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, prpria para dever durar na gua por uns 20 ou 30 anos. Nossa me jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes no vadiava, se ia propor agora para pescarias e caadas? Nosso pai nada no dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais prxima do rio, obra de nem quarto de lgua: o rio por a se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de no se poder ver a forma da outra beira. E esquecer no posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, no pegou matula e trouxa, no fez a alguma recomendao. Nossa me, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de plida, mascou o beio e bramou: C vai, oc fique, voc nunca volte! Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir tambm, por uns passos. Temi a ira de nossa me, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propsito perguntei: Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa? Ele s retornou a olhar em mim e me botou a bno, com gesto me mandando para trs. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacar, comprida longa. Nosso pai no voltou. Ele no tinha ido a nenhuma parte. S executava a inveno de se permanecer naqueles espaos do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela no saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que no havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, tomaram juntamente conselho. [...] A gente teve de se acostumar com aquilo. s penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que no queria, s com nosso pai me achava: assunto que jogava para trs meus pensamentos. O severo que era, de no se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terrveis de meio-do-ano, sem arrumo, s com o chapu velho na cabea, por todas as semanas, e meses, e os anos sem fazer conta do se-ir do viver. No pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, no pisou mais em cho nem capim. [...] Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausncia: e o rio-rio-rio, o rio pondo perptuo. Eu sofria j o comeo de velhice esta vida era s o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, nsias, c de baixo, cansaos, perrenguice de reumatismo. E ele? Por qu? Devia de padecer demais. De to idoso, no ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o corao. Ele estava l, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia. Sem fazer vspera. Sou doido? No. Na nossa casa, a palavra doido no se falava, nunca mais se falou, os anos todos, no se condenava ningum de doido. Ningum doido. Ou, ento, todos. S fiz, que fui l. Com um leno, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, a e l, o vulto. Estava ali, sentado popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforar a voz: Pai, o senhor est velho, j fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, no carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa! . . . E, assim dizendo, meu corao bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em p. Manejou remo ngua, proava para c, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o brao e feito um saudar de gesto o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu no podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de l, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de alm. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdo. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ningum soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que no foi, o que vai ficar calado. Sei que agora tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, ento, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem tambm numa canoinha de nada, nessa gua que no para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio. (ROSA, Joo Guimares. Primeiras Estrias. Rio de Janeiro: Jos Olympio, Civilizao Brasileira, Trs, 1974, p. 51-56). Considere as afirmaes sobre o narrador no conto A Terceira Margem do Rio I. Como personagem e narrador ao mesmo tempo, o filho exerce uma dupla funo na narrativa, cujo objetivo envolver afetivamente o leitor no fato narrado. II. O carter contraditrio do narrador ilustrado em Nosso pai no voltou. Ele no tinha ido a nenhuma parte. III. Em Seria que, ele, que nessas artes no vadiava, se ia propor agora para pescarias e caadas?, o narrador registra pensamentos ntimos dos personagens. Est(o) correta(s) apenas
(INSPER 2012) A morte do lpis e da caneta Boa notcia para as crianas americanas. Vai ficando optativo, nos Estados Unidos, escrever em letra de mo. Um dos ltimos a se renderem aos novos tempos o Estado de Indiana, que aposentou os cadernos de caligrafia agora em julho. O argumento que ningum precisa mais disso: as crianas fazem tudo no computador e basta ensinar-lhes um pouco de digitao. Depois do fim do papel, o fim do lpis e da caneta! Tem lgica, mas acho demais. Sou o primeiro a reclamar das inutilidades impostas aos alunos durante toda a vida escolar, mas o fim da escrita cursiva me deixa horrorizado. A mquina de calcular no eliminou a necessidade de se aprender, ao menos, a tabuada; no aceito que o teclado termine com a letra de mo. A questo vai alm do seu aspecto meramente prtico. A letra de uma pessoa como o seu rosto. Como todo mundo, gosto de ver como a cara de um escritor, de um poltico, de qualquer personalidade com quem estou travando contato - e logo os e-mails viro com o retrato do remetente, como j acontece no Facebook. (COELHO, Marcelo. Folha de So Paulo, 20/07/2011) Nesse artigo, o autor se prope acontradizera tese de que escrita cursiva