(ITA - 1999 - 1ª FASE)
Em casa trava-se uma luta tácita e subterrânea entre nós e a nossa empregada doméstica. Sem nos aventurarmos em demasiadas recomendações, que poderiam comprometer o bom clima familiar, a cada incursão na cozinha, silenciosa mas ostensivamente, arrumamos o invólucro dos frios, protegemos o toquinho de salame, fechamos o saco plástico ao redor do pão, guardamos o guisado desesperadamente abandonado numa panela de alumínio escondida no forno, verificamos as datas do iogurte, descobrimos insuspeitados tesouros de legumes murchos esquecidos e decretamos uma sopa para o menu da noite etc. O meu medíocre racionalismo se confronta inicialmente com a ideia que a pobreza deveria ensinar naturalmente uma gestão cuidadosa dos alimentos, e estranho portanto uma tamanha indiferença pelo desperdício.
Um dia, descendo a rua da Praia, em Porto Alegre, deparo com uma mendiga, uma criancinha nos braços. Dou-lhe um dinheiro e vejo que a criança está tomando uma mamadeira de Coca-Cola. Resisto ao impulso de aconselhar leite e entrar numa absurda conversa sobre o supérfluo e o necessário, resisto tanto mais que constato, observando, que, ao lado do miserável grupinho familiar, há um embrulho de comestíveis e, ao lado do embrulho, no chão, um pequeno amontoado de restos visivelmente destinados ao lixo - um quarto de sanduíche, um biscoito mordido... - que faria a felicidade de qualquer mendigo parisiense.
Lembro uma visita com meu filho Maximiliano ao mercado de São Joaquim, em Salvador. No fim da tarde assistimos ao fechamento: sobra no chão, machucado mas ainda apetitoso, um exército de frutas, sobretudo abacaxis e laranjas, suficiente para satisfazer as necessidades vitamínicas de todas as crianças e os adultos carentes da cidade. Sei que a observação é mal-vinda onde a carência é sobretudo de proteínas. Mas ficamos, Max e eu, perplexos frente à estranha contradição entre a necessidade e o desperdício.
(Calligaris, Contardo, HELLO BRASIL! NOTAS DE UM PSICANALISTA EUROPEU VIAJANDO AO BRASIL. São Paulo: Escuta, 1986.)
Assinale a melhor opção, considerando as seguintes asserções com relação ao texto:
I - O autor estranha o desperdício de alimentos num país onde muitas pessoas passam fome.
II - Embora o autor reconheça que o desperdício de alimentos existentes no Brasil ocorre na Europa também, menciona que os mendigos parisienses ficariam felizes com os sanduíches e biscoitos desperdiçados.
III - Segundo o autor, as pessoas no Brasil desperdiçam alimentos que não suprem as necessidades de adultos e crianças carentes da zona urbana, sobretudo porque a carência nutricional maior no país é de proteínas.
está(ão) correta(s):
Apenas a I.
Apenas a III.
I e II.
I e III.
Todas.