(PUC/Campinas - 2020)
Literatura e realidade
Hoje está na moda dizer que uma obra literária é constituída mais a partir de outras obras, que a precederam, do que em função de estímulos diretos da realidade, pessoal, social ou física. Deve haver boa dose de verdade nisso. Todas as vezes, dizia Proust1, que um grande artista nasce, é como se o mundo fosse criado de novo, porque nós começamos a enxergá-lo conforme ele o mostra.
Para o Naturalismo, a obra era essencialmente uma transposição direta da realidade, como se o escritor conseguisse ficar diante dela na situação de puro sujeito em face do objeto puro, registrando (teoricamente sem interferência de outro texto) as noções e impressões que iriam constituir seu próprio texto. Essa estética repousa na utopia da originalidade absoluta pela experiência imediata, que levava o escritor a desconfiar da influência mediadora de obras alheias.
Mas nós sabemos que, embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes de tudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A sua razão específica é a disposição dos núcleos de significado, formando uma combinação singular, segundo a qual a realidade do mundo foi reordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, para dar nascimento ao outro mundo que a obra constitui.
Ver criticamente a obra é escolher um dos momentos do processo como plataforma de observação. Num extremo, é possível encará-la como uma duplicação da realidade, de maneira que o trabalho imitativo fique reduzido a um registro sem grandeza, pois se era para fazer igual, por que não deixar a realidade em paz? Já no outro extremo é possível ver a obra como um objeto manufaturado com arbítrio soberano, que alcança significação na medida em que nada tem a ver com a realidade. Mas seria melhor a visão que pudesse rastrear na obra o mundo como material de origem, para surpreender no processo vivo da montagem a singularidade da forma segundo a qual se dá a ver um mundo novo.
1Marcel Proust (1871-1922): romancista, ensaísta e crítico literário francês, autor de Em Busca do Tempo Perdido, publicada em sete volumes.
(Adaptado de: CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2013, p. 107-108)
É correto o seguinte comentário:
Em "Essa estética repousa na utopia da originalidade absoluta pela experiência imediata, que levava o escritor a desconfiar da influência mediadora de obras alheias e Mas nós sabemos que, embora filha do mundo, a obra é um mundo", as unidades em destaque pertencem à mesma classe de palavras.
Em "é como se o mundo fosse criado de novo, porque nós começamos a enxergá-lo conforme ele o mostra", o verbo “começar” está empregado em estrutura idêntica à que se vê em “Começamos a limpeza da sala”.
Se, em vez de "Deve haver boa dose de verdade nisso", a frase fosse “Devem haver boas razões para acreditar nisso”, esta estaria em conformidade com a norma-padrão da língua.
Submetida a esta outra pontuação, a frase “Mas nós sabemos que embora filha do mundo, a obra é um mundo e que convém antes de tudo, pesquisar nela mesma, as razões que a sustêm como tal.” preservaria a correção original.
Em "Mas seria melhor a visão que pudesse rastrear na obra o mundo como material de origem, para surpreender no processo vivo da montagem a singularidade da forma", na oração que expressa finalidade, o núcleo do objeto direto vem acompanhado de dois adjuntos adnominais.