(AFA - 2020)
TEXTO I
Trecho da peça teatral A raposa e as uvas, escrita por Guilherme de Figueiredo. A cena ocorre na cidade de Samos (Grécia Antiga), na casa de Xantós, um filósofo grego, que recebe o convidado Agnostos, um capitão ateniense. O jantar é servido por Esopo e Melita, escravos de Xantós.
(Entra Esopo, com um prato que coloca sobre a mesa.
Está coberto com um pano. Xantós e Agnostos se dirigem
para a mesa, o primeiro faz ao segundo um sinal para
sentarem-se.)
5 XANTÓS (Descobrindo o prato) – Ah, língua! (Começa a
comer com as mãos , e faz um sinal parta Melita sirva
Agnostos. Este também começa a comer vorazmente,
dando grunhidos de satisfação.) Fizeste bem em trazer
língua, Esopo. É realmente uma das melhores coisas do
10 mundo. (Sinal para que sirvam o vinho. Esopo serve,
Xantós bebe.) Vês, estrangeiro, de qualquer modo é bom
possuir riquezas. Não gostas de saborear esta língua e
este vinho?
AGNOSTOS (A boca entupindo comendo) – Hum.
15 XANTÓS – Outro prato Esopo. (Esopo sai à esquerda e
volta imediatamente com outro prato coberto. Serve,
Xantós de boca cheia) Que é isto? Ah, língua de fumeiro!
É bom língua de fumeiro, hein, amigo?
AGNOSTOS – Hum. (Xantós serve-se de vinho) /.../
20 XANTÓS (A Esopo) Serve outro prato. (Serve) Que trazes
aí?
ESOPO – Língua.
XANTÓS – Mais língua? Não te disse que trouxesse o
que há de melhor para o meu hóspede? Por que só trazes
25 língua? Queres expor-me ao ridículo?
ESOPO – Que há de melhor do que a língua? A língua é o
que nos une todos, quando falamos. Sem a língua nada
poderíamos dizer. A língua é a chave das ciências, o
órgão da verdade e da razão. Graças a língua dizemos o
30 nosso amor. Com a língua se ensina, se persuade, se
instrui, se reza, se explica, se canta, se descreve, se
elogia, se mostra, se afirma. É com a língua que dizemos
sim. É a língua que ordena os exércitos à vitória, é a
língua que desdobra os versos de Homero. A língua cria o
35 mundo de Esquilo, a palavra de Demóstenes. Toda a
Grécia, Xantós, das colunas do Partenon às sotátuas de
Pidias, dos deuses do Olimpo à glória sobre Troia, da ode
do poeta ao ensinamento do filósofo, toda a Grécia foi
feita com a língua, a língua de belos gregos claros falando
40 para a eternidade.
XANTÓS (Levantando-se, entusiasmado, já meio ébrio) –
Bravo, Esopo. Realmente, tu nos trouxeste o que há de
melhor. (Toma outro saco da cintura e atira-o ao escravo)
Vai agora ao mercado, e traze-nos o que houver de pior,
45 pois quero ver a sua sabedoria! (Esopo retira-se à frente
com o saco, Xantós fala a Agnostos.) Entao, não é útil e
bom possuir um escravo assim?
AGNOSTOS (A boca cheia) – Hum. /.../
(Entra Esopo com prato coberto.)
50 XANTÓS – Agora que já sabemos o que há de melhor na
terra, vejamos o que há de pior na opinião deste horrendo
escravo! Língua, ainda? Mais língua? Não disseste que
língua era o que havia de melhor? Queres ser
espancado?
55 ESOPO – A língua senhor, é o que há de pior no mundo.
É a fonte de todas as intrigas, o início de todos os
processos, a mãe de todas as discussões. É a língua que
usam os maus poetas que nos fatigam na praça, é a
língua que usam os filósofos que não sabem pensar. É a
60 língua que mente, que esconde, que tergiverse, que
blasfema, que insulta, que se acovarda, que se mendiga,
que impreca, que bajula, que destrói, que calunia, que
vende, que seduz, é com a língua que dizemos morre e
canalha e corja. É com a língua que dizemos não. Com a
65 língua Aquiles mostrou sua cólera, com a língua a Grécia
vai tumultuar os pobres cérebros humanos para toda a
eternidade! Aí está, Xantós, porque a língua é a pior de
todas as coisas!
(FIGUEIREDO, Guilherme. A raposa e as uvas – peça em 3 atos. Cópia digitalizada pelo GETEB – Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro/UFSJ. Disponível para fins didáticos em www.teatroparatodosufsj.com.br/ download/guilherme-figueiredo-a-raposa-e-as-uvas-2/ Acesso em 13/03/2019.)
Sobre o texto I, é INCORRETO afirmar que:
há elementos estruturais utilizados pelo autor no intuito de apresentar informações pertinentes à atuação dos personagens.
existe a atuação de um discurso metalinguístico que ratifica a postura enaltecedora e inflexivel do autor em torno da palavra.
se estabelece um conflito comunicativo entre os personagens Esopo e Xantós, o que expressa, de maneira simbólica, a versatilidade da língua.
se articula um jogo semântico ao longo do texto, responsável por trazer ao diálogo um grau de imprevisibilidade, que confere a criatividade da peça,