(AFA - 2020)
TEXTO II
Em 1934, um redator de Nova York chamado Robert Pirosh largou o emprego bem remunerado numa agência de publicidade e rumou para Hollywood, decidido a trabalhar como roteirista. Lá chegando, anotou o nome e o endereço de todos os diretores, produtores e executivos que conseguiu encontrar e enviou-lhes o que certamente é o pedido de emprego mais eficaz que alguém já escreveu, pois resultou em três entrevistas, uma das quais lhe rendeu o cargo de roteirista assistente da MGM.
Prezado senhor:
Gosto de palavras. Gosto de palavras gordas, untuosas, como lodo, torpitude, glutinoso, bajulador. Gosto de palavras solenes, angulosas, decrépitas, como pudico, ranzinza, pecunioso, valetudinário. Gosto de palavras espúrias, enganosas, como mortiço, liquidar, tonsura, mundana. Gosto de suaves palavras com “v”, como Svengali, avesso, bravura, verve. Gosto de palavras crocantes, quebradiças, crepitantes, como estilha, croque, esbarrão, crosta. Gosto de palavras emburradas, carrancudas, amuadas, como furtivo, macambúzio, escabioso, sovina. Gosto de palavras chocantes, exclamativas, enfáticas, como astuto, estafante, requintado, horrendo. Gosto de palavras elegantes, rebuscadas, como estival, peregrinação, elísio, alcíone. Gosto de palavras vermiformes, contorcidas, farinhentas, como rastejar, choramingar, guinchar, gotejar. Gosto de palavras escorregadias, risonhas, como topete, borbulhão, arroto.
Gosto mais da palavra roteirista que da palavra redator, e por isso resolvi largar meu emprego numa agência de publicidade de Nova York e tentar a sorte em Hollywood, mas, antes de dar o grande salto, fui para a Europa, onde passei um ano estudando, contemplando e perambulando. Acabei de voltar e ainda gosto de palavras. Posso trocar algumas com o senhor?
Robert Pirosh
Madison Ave, 385
quarto 610
Nova York
TEXTO III
Janela sobre a palavra (V)
Javier Villafañe busca em vão a palavra que deixou escapar bem quando ia pronunciá-la. Onde terá ido essa palavra, que ele tinha na ponta da língua?
Haverá algum lugar onde se juntam todas as palavras que não quiseram ficar? Um reino das palavras perdidas? As palavras que você deixou escapar, onde estarão à sua espera?
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 222
Sobre o texto III, é correto afirmar que:
utiliza a metalinguagem para reforçar a ideia de que a poesia só existe quando se consegue usar a palavra certa, exata.
se assemelha ao texto II, pois ambos são do gênero carta.
nele o escritor se refere às palavras que escaparam antes de serem pronunciadas; elas estariam, talvez, em um "Reino das palavras perdidas".
a expressão "na ponta da língua" equivale à expressão do texto I "é fonte de todas as intrigas".