(FUVEST - 2019 - 1ª FASE)
I. Cinquenta anos! Não era preciso confessá‐lo. Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto* como nos primeiros dias. Naquela ocasião, cessado o diálogo com o oficial da marinha, que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou‐me dançar uma polca, embriagar‐ me das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro? Os meus cinquenta anos.
*ágil
II. Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinquenta anos, acrescentei: “Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias”. Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo‐se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente. Valha‐me Deus! é preciso explicar tudo.
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Entre os dois trechos do romance, nota‐se o movimento que vai da memória de vivências à revisão que o defunto autor faz de um mesmo episódio. A citação, pertencente a outro capítulo do mesmo livro, que melhor sintetiza essa duplicidade narrativa, é:
“A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo”.
“Obra de finado. Escrevi‐a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil perceber o que poderá sair desse conúbio”
“Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito do livro és tu, leitor”.
“Viver não é a mesma cousa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista na gramática”.
“Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija‐flor; havia também a da lesma e do sapo”.