(IME - 2007)
Texto III
APELO DE DONA FLOR EM AULA E EM DEVANEIO
Me deixem em paz com meu luto e minha solidão. Não me falem dessas coisas, respeitem meu estado de viúva. Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero é o vatapá de peixe (ou de galinha), o mais famoso de toda a culinária da Bahia. Não me digam que sou jovem, sou viúva: morta estou para essas coisas. Vatapá para servir a dez pessoas (e para sobrar como é devido).
Tragam duas cabeças de garoupa fresca. Pode ser de outro peixe, mas não é tão bom. Tomem do sal, do coentro, do alho e da cebola, alguns tomates e o suco de um limão. Quatro colheres das de sopa, cheias com o melhor azeite doce, tanto serve português como espanhol; ouvi dizer que o grego inda é melhor, não sei. Jamais usei por não encontrá-lo à venda. Se encontrar um noivo, que farei? Alguém que retome meu desejo morto, enterrado no carrego do defunto? Que sabem vocês, meninas, da intimidade das viúvas? Desejo de viúva é desejo de deboche e de pecado, viúva séria não fala nessas coisas, não pensa nessas coisas, não conversa sobre isso. Me deixem em paz, no meu fogão.
Refoguem o peixe nesses temperos todos e o ponha a cozinhar num bocadinho d’água, um bocadinho só, um quase nada. Depois é só coar o molho, deixá-lo à parte, e vamos adiante.
A seguir agreguem leite de coco, o grosso e puro, e finalmente o azeite-de-dendê, duas xícaras bem medidas: flor de dendê, da cor de ouro velho, a cor do vatapá. Deixem cozinhar por longo tempo em fogo baixo; com a colher de pau não parem de mexer, sempre para o mesmo lado: não parem de mexer senão embola o vatapá. Mexam, remexam, vamos, sem parar; até chegar ao ponto justo e exatamente.
Em fogo lento meus sonhos me consomem, não me cabe culpa, sou apenas uma viúva dividida ao meio, de um lado viúva honesta e recatada, de outro viúva debochada, quase histérica, desfeita em chilique e calundu. Esse mando de recato me asfixia, de noite corro as ruas em busca de marido. De marido a quem servir o vatapá doirado e meu cobreado corpo de gengibre e mel.
Chegou o vatapá ao ponto, vejam que beleza! Para servi-lo falta apenas derramar um pouco de azeite-de-dendê por cima, azeite cru. Acompanhado de acaçá o sirvam, e noivos e maridos lamberão os beiços.
AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 231-233.
As obras de Jorge Amado representam o regionalismo baiano das zonas rurais do cacau e da zona urbana de Salvador. Sua grande preocupação foi analisar a sociedade como um todo. No livro “Dona flor e seus dois maridos”, o autor baiano traz características que abrangem:
uma personalidade cética e autoritária.
uma sintaxe tradicional e disciplinada.
uma forte coloração racial, envolvendo a questão da desigualdade social e do preconceito.
um tema relacionado pela exploração do trabalho na fazenda.
um teor lírico, envolvido por um certo humorismo extraído do cotidiano.