(IME - 2018/2019 - 2ª FASE )
Tomando por base de reflexão os dois textos apresentados nesta prova, redija um texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema as contribuições da arte para uma percepção da realidade que vá além das aparências.
O seu texto deverá ter entre 25 (vinte e cinco) a 30 (trinta) linhas escritas à tinta azul ou preta.
A produção de texto DEVERÁ ser realizada no CADERNO DE SOLUÇÕES.
Textos utilizados na prova:
Texto 1
BECOS DE GOIÁS
1 | Beco da minha terra... |
Amo tua paisagem triste, ausente e suja. | |
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa. | |
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio. | |
5 | E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia, |
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre, | |
calçando de ouro a sandália velha, | |
jogada no teu monturo. | |
Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, | |
10 | descendo de quintais escusos |
sem pressa, | |
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano. | |
Amo a avenca delicada que renasce | |
na frincha de teus muros empenados, | |
15 | e a plantinha desvalida, de caule mole |
que se defende, viceja e floresce | |
no agasalho de tua sombra úmida e calada. | |
Amo esses burros-de-lenha | |
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros, | |
20 | secos, lanzudos, malzelados, cansados, pisados. |
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra, | |
no range-range das cangalhas. | |
E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja. | |
Sem infância, sem idade. | |
25 | Franzino, maltrapilho, |
pequeno para ser homem, | |
forte para ser criança. | |
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade. | |
Amo e canto com ternura | |
30 | todo o errado da minha terra. |
Becos da minha terra, | |
discriminados e humildes, | |
lembrando passadas eras... | |
Beco do Cisco. | |
35 | Beco do Cotovelo. |
Beco do Antônio Gomes. | |
Beco das Taquaras. | |
Beco do Seminário. | |
Bequinho da Escola. | |
40 | Beco do Ouro Fino. |
Beco da Cachoeira Grande. | |
Beco da Calabrote. | |
Beco do Mingu. | |
Beco da Vila Rica... | |
45 | Conto a estória dos becos, |
dos becos da minha terra, | |
suspeitos... mal afamados | |
onde família de conceito não passava. | |
“Lugar de gentinha” - diziam, virando a cara. | |
50 | De gente do pote d’água. |
De gente de pé no chão. | |
Becos de mulher perdida. | |
Becos de mulheres da vida. | |
Renegadas, confinadas | |
55 | na sombra triste do beco. |
Quarto de porta e janela. | |
Prostituta anemiada, | |
solitária, hética, engalicada, | |
tossindo, escarrando sangue | |
60 | na umidade suja do beco. |
Becos mal assombrados. | |
Becos de assombração... | |
Altas horas, mortas horas... | |
Capitão-mor - alma penada, | |
65 | terror dos soldados, castigado nas armas. |
Capitão-mor, alma penada, | |
num cavalo ferrado, | |
chispando fogo, | |
descendo e subindo o beco, | |
70 | comandando o quadrado - feixe de varas... |
Arrastando espada, tinindo esporas... | |
Mulher-dama. Mulheres da vida, | |
perdidas, | |
começavam em boas casas, depois, | |
75 | baixavam pra o beco. |
Queriam alegria. Faziam bailaricos. | |
Baile Sifilítico - era ele assim chamado. | |
O delegado-chefe de Polícia - brabeza - | |
dava em cima... | |
80 | Mandava sem dó, na peia. |
No dia seguinte, coitadas, | |
cabeça raspada a navalha, | |
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz, | |
na frente da Cadeia. | |
85 | Becos da minha terra... |
Becos de assombração. | |
Românticos, pecaminosos... | |
Têm poesia e têm drama. | |
O drama da mulher da vida, antiga, | |
90 | humilhada, malsinada. |
Meretriz venérea, | |
desprezada, mesentérica, exangue. | |
Cabeça raspada a navalha, | |
castigada a palmatória, | |
95 | capinando o largo, |
chorando. Golfando sangue. | |
(ÚLTIMO ATO) | |
Um irmão vicentino comparece. | |
Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara. | |
100 | Uma passagem de terceira no grande coletivo de São Vicente. |
Uma estação permanente de repouso - no aprazível São Miguel. | |
Cai o pano. |
CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 21a ed. - São Paulo: Global Editora, 2006.
Texto 2
O ELEFANTE
1 | Fabrico um elefante |
de meus poucos recursos. | |
Um tanto de madeira | |
tirado a velhos móveis | |
5 | talvez lhe dê apoio. |
E o encho de algodão, | |
de paina, de doçura. | |
A cola vai fixar | |
suas orelhas pensas. | |
10 | A tromba se enovela, |
é a parte mais feliz | |
de sua arquitetura. | |
Mas há também as presas, | |
dessa matéria pura | |
15 | que não sei figurar. |
Tão alva essa riqueza | |
a espojar-se nos circos | |
sem perda ou corrupção. | |
E há por fim os olhos, | |
20 | onde se deposita |
a parte do elefante | |
mais fluida e permanente, | |
alheia a toda fraude. | |
Eis o meu pobre elefante | |
25 | pronto para sair |
à procura de amigos | |
num mundo enfastiado | |
que já não crê em bichos | |
e duvida das coisas. | |
30 | Ei-lo, massa imponente |
e frágil, que se abana | |
e move lentamente | |
a pele costurada | |
onde há flores de pano | |
35 | e nuvens, alusões |
a um mundo mais poético | |
onde o amor reagrupa | |
as formas naturais. | |
Vai o meu elefante | |
40 | pela rua povoada, |
mas não o querem ver | |
nem mesmo para rir | |
da cauda que ameaça | |
deixá-lo ir sozinho. | |
45 | É todo graça, embora |
as pernas não ajudem | |
e seu ventre balofo | |
se arrisque a desabar | |
ao mais leve empurrão. | |
50 | Mostra com elegância |
sua mínima vida, | |
e não há cidade | |
alma que se disponha | |
a recolher em si | |
55 | desse corpo sensível |
a fugitiva imagem, | |
o passo desastrado | |
mas faminto e tocante. | |
Mas faminto de seres | |
60 | e situações patéticas, |
de encontros ao luar | |
no mais profundo oceano, | |
sob a raiz das árvores | |
ou no seio das conchas, | |
65 | de luzes que não cegam |
e brilham através | |
dos troncos mais espessos. | |
Esse passo que vai | |
sem esmagar as plantas | |
70 | no campo de batalha, |
à procura de sítios, | |
segredos, episódios | |
não contados em livro, | |
de que apenas o vento, | |
75 | as folhas, a formiga |
reconhecem o talhe, | |
mas que os homens ignoram, | |
pois só ousam mostrar-se | |
sob a paz das cortinas | |
80 | à pálpebra cerrada. |
E já tarde da noite | |
volta meu elefante, | |
mas volta fatigado, | |
as patas vacilantes | |
85 | se desmancham no pó. |
Ele não encontrou | |
o de que carecia, | |
o de que carecemos, | |
eu e meu elefante, | |
90 | em que amo disfarçar-me. |
Exausto de pesquisa, | |
caiu-lhe o vasto engenho | |
como simples papel. | |
A cola se dissolve | |
95 | e todo o seu conteúdo |
de perdão, de carícia, | |
de pluma, de algodão, | |
jorra sobre o tapete, | |
qual mito desmontado. | |
100 |
Amanhã recomeço. |
ANDRADE, Carlos Drummond de. O Elefante. 9ª ed. - São Paulo: Editora Record, 1983.