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(IME - 2019/2020 - 2 FASE)A primeira publicao do c

(IME - 2019/2020 - 2ª FASE) 

A primeira publicação do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estação, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma época, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clínica Psiquiátrica. É nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionária que Machado propõe sua crítica ácida, reveladora da escassez de conhecimento científico e da abundância de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relações promíscuas entre o poder médico que se pretendia baluarte da ciência e o poder político tal como era exercido em Itaguaí, então uma vila, distante apenas alguns quilômetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves capítulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentações cientificistas até que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a única pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se.

Texto 1

Capítulo IV
UMA TEORIA NOVA

1     Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

5  Um dia de manhã, – eram passadas três semanas, – estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

              – Tratava-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

10         Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: – “Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda;
15 aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? Aí tens o lucro, biltre!”. – E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.

20   Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço. – Estou muito contente, disse ele. – Notícias do nosso povo?, perguntou o boticário com a voz trêmula. O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu: – Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência,
25  porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

30           Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um
35 abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

       – A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério

40   – Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

               Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as
45 demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; – ou por meio de matraca.

                Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

50             De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, – um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, – aquele justamente que mais se opusera à 
55 criação da Casa Verde, – desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regime
60 mereciam o desprezo do nosso século.

                 – Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

                  E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

65             – Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

                 Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

                 – Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia,
70 insânia e só insânia.

                 O Vigário Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

                – Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão
75 estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca? Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

80            A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, – com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo à beira de uma revolução. 

ASSIS, Machado de. O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponível em: . Acesso em: 12/08/2019.

 

Com a finalidade de preservar a coerência e a correção gramatical do texto, constata-se, no trecho abaixo, o uso de um elemento coesivo cuja função é anafórica. “Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: – “Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável.” (Texto 1, linhas 12 a 15) Podemos afirmar que o vocábulo “te” em negrito faz referência ao(à)

A

Dr. Bacamarte

B

leitor.

C

boticário.

D

D. Evarista.

E

Vigário Lopes.