(IME - 2021/2022 - 2ª FASE)
Texto 2
Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas da literatura portuguesa. Criou uma obra de natureza filosófica sobre a consciência e as suas mais profundas inquietações existenciais. Expressou uma personalidade estética multifacetada por meio dos heterônimos, os quais consistiam em várias identidades que detinham biografia e características psicológicas distintas: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Álvaro de Campos, um engenheiro naval, a quem se deve a “Ode triunfal”. Esse heterônimo apresenta uma personalidade estética marcada pelas concepções futuristas e pela intenção de assimilar ao eu lírico a realidade exterior, considerada em suas manifestações mais prosaicas, ao mesmo tempo em que aquele se projeta no mundo.
ODE TRIUNFAL
1 À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
5 Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
10 Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
15 Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
É ha Platão o e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
20 Só porque houve outrora e foram humanosVirgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
25 Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
30 Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
35 Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrênuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
40 E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
45 Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Atica, 1944 (imp. 1993), p. 144 (texto adaptado).
Em relação ao texto 2, considere as expressões em negrito e assinale a alternativa que evidencia a analogia entre as máquinas e os entes da natureza:
“Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, de vos ouvir demasiadamente de perto.” (linhas 10 e 11)
“Horas europeias, produtoras, entaladas entre maquinismos e afazeres úteis! Grandes cidades paradas nos cafés [...]” (linhas 41 a 43)
“Os rumores e os gestos do Útil e as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!” (linhas 46 e 47)
“A todos os perfumes de óleos e calores e carvões desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (linha 31 ´ e 32)
“E ha Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão.” (linhas 19 e 20)