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Disciplina

(IME - 2021/2022 - 2 FASE)Texto 3Lima Barreto (188

Português | Interpretação de texto | fatores de contextualização | fatores de construção da coerência | inferências
Português | Interpretação de texto | narração | elementos da narrativa | personagem na narrativa
IME 2021IME PortuguêsTurma ITA-IME

(IME - 2021/2022 - 2ª FASE) 

Texto 3

Lima Barreto (1881-1922) viveu em um período de intensas transformações sociais no País, marcado pela abolição da escravatura (1888), advento da ordem republicana (1889) e urbanização crescente. Filho de pais negros (o pai era tipografo e a mãe, professora), Lima Barreto abordou principalmente os temas e os personagens típicos dos subúrbios cariocas, cruzando os limites da realidade e da ficção. Nessa perspectiva, o conto A nova Califórnia, publicado em 1916, faz uma alusão à Corrida do ouro, nos Estados Unidos, da primeira metade do século XIX, para condenar ironicamente a ganância e a busca do enriquecimento fácil.

Sinopse do conto

Raimundo Flamel, um químico, chega a pequena cidade de Tubiacanga, no Rio de Janeiro. Anos depois, ele encontra uma fórmula secreta capaz de transformar ossos humanos em ouro, o que transformaria profundamente a cidade, ate então, ordeira e tranquila. Depois de revelar a sua descoberta, Flamel some misteriosamente. A partir daí, o cemitério é profanado, ocorrendo vários roubos de cadáveres.

A NOVA CALIFÓRNIA

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.

— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.

Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse. O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.

Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.

Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.

Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranqüilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.

De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer. 

Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante. Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."

A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.

Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...

Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero1, o Candido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dous dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro2 de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."

E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.

Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso — pai da pobreza — e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.

BARRETO, Lima. A nova California e outros contos. São Paulo: Unesp, 2012, p. 11-23 (texto adaptado).

 

“A palavra literária não é um ponto, um sentido fixo, mas um cruzamento de superfícies textuais” (KRISTEVA, Julia. Introdução à Seminálise. São Paulo: Debates, 1969).

A esse respeito, no texto 3, pode-se dizer que o procedimento intertextual empregado no uso da expressão de referência religiosa “bondade de Messias”, relativa à pessoa de Raimundo Flamel, serviu, do ponto de vista da construção da narrativa, para

I. demonstrar a formação religiosa exemplar do forasteiro, que passou a ser reconhecida por todos, de acordo com o narrador.
II. evidenciar o consenso favorável construído pelos habitantes de Tubiacanga sobre o sábio, depois de algum tempo, na perspectiva do narrador.
III. marcar o confronto entre a mediocridade da cidade e a alta estatura moral de Raimundo Flamel, segundo o narrador.

Está(ão) correta(s) a(s) assertiva(s):

A

I, apenas.

B

II, apenas

C

III, apenas.

D

I e II, apenas.

E

II e III, apenas.