(Pucpr 2009)
Observe o seguinte fragmento do conto "Felicidade Clandestina", do livro com o mesmo nome, escrito por Clarice Lispector:
"Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. E como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grande, meu Deus, era um livro pra se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria".
Fonte: Clarice Lispector, "Felicidade Clandestina"
Na relação entre as personagens se verificam as seguintes temáticas presentes no todo da obra de Clarice Lispector:
A complexidade e as contradições dos relacionamentos humanos, que envolvem, no caso da narradora, a servidão voluntária em nome de um benefício eventual e, no caso da antagonista, a compensação dos traumas de sua "inferioridade" pelo exercício do poder.
A religiosidade - presente na expressão "era um livro grosso, meu Deus" - e a crença nos valores cristãos como o perdão, que, ao final, a narradora dirigirá à sua antagonista.