(UNB/PAS - 2017 - 1ª ETAPA)
No techo I a seguir, da obra As intermitências da morte, de José Saramago, a morte anuncia, em rede nacional de televisão, por meio de uma carta, que voltará à atividade depois de ter deixado de matar as pessoas, por alguns meses, em determinado país (não nomeado no livro). Na carta, a morte afirma que passará a dar uma espécie de aviso prévio aos seres humanos, avisando-os com uma semana de antecedência da data de sua morte. No trecho II, da mesma obra, o autor sugere que se imagine o momento em que um homem com "estupenda saúde", que estava a caminho do trabalho, recebe o aviso de que morrerá em uma semana.
Trecho I
(...)
senhor director-geral da televisão nacional, (...) venho informar de que a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios, desde o princípio dos tempos e até ao dia trinta e um de dezembro do ano passado, devo explicar que a intenção que me levou a interromper a minha actividade, a parar de matar, a embainhar a emblemática gadanha que imaginativos pintores e gravadores doutro tempo me puseram na mão, foi oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver sempre, (...) passado este período de alguns meses a que poderíamos chamar de prova de resistência ou de tempo gratuito e tendo em conta os lamentáveis resultados da experiênCia, tanto de um ponto de vista moral, isto é, filosófico, como de um ponto de vista pragmático, isto é, social, considerei que o melhor para as famílias e para a sociedade no seu conjunto, (...) seria vir a público reconhecer o equivoco de que sou responsável e anunciar o imediato regresso à normalidade, o que significará que a todas aquelas pessoas que já deveriam estar mortas, mas que, com saúde ou sem ela, permaneceram neste mundo, se lhes apagará a candeia da vida quando se extinguir no ar a última badalada da meia-noite, (...) portanto resignem-se e morram sem discutir porque de nada lhes adiantaria, porém, um ponto há em que sinto ser minha obrigação dar a mão à palmatória, o qual tem que ver com o injusto e cruel procedimento que vinha seguindo, que era tirar a vida às pessoas à falsa-fé, sem aviso prévio, sem dizer água-vai, tenho de reconhecer que se tratava de uma indecente brutalidade, quantas vezes não dei nem sequer tempo a que fizessem testamento, é certo que na maior parte dos casos lhes mandava uma doença para abrir caminho, mas as doenças têm algo de curioso, os seres humanos sempre esperam safar-se delas, de modo que só quando já é tarde de mais se vem a saber que aquela iria ser a última, enfim, a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família, pedindo perdão pelo mal feito ou fazendo as pazes com o primo com quem desde há vinte anos estava de relações cortadas, dito isto, senhor director-geral da televisão nacional, só me resta pedir-lhe que faça chegar hoje mesmo a todos os lares do país esta minha mensagem autógrafa, que assino com o nome com que geralmente se me conhece, morte (...)
Trecho II
Imagine-se uma pessoa, dessas que gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que, uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo, senhor fulano, trago aqui uma carta para si.
(...)
Caro senhor, lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora, morte. A assinatura vem com inicial minúscula, o que, como sabemos, representa, de alguma forma, o seu certificado de origem. Duvida o homem (...) se deverá voltar para casa e desabafar com a família a irremediável pena, ou se, pelo contrário, terá de engolir as lágrimas e prosseguir o seu caminho, ir aonde o trabalho o espera.
Considerando o propósito da decisão da morte de avisar as pessoas com antecedência de uma semana sobre o fato de que irão morrer, apresentado ao final do trecho I, redija um texto narrativo contando, com um toque de humor ou ironia, o restante do dia da pessoa que acabara de receber a carta no trecho II.