(UNESP - 2012/2 - 2a fase - Questão 25)
O caso da A Folha
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A Constituição Federal, edição oficial da Imprensa Nacional, 1891, Título III secção II, — Declaração dos Direitos, art. 72, § 12, diz:
“Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa, ou pela tribuna sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato.”
A lei que dispõe sobre os crimes de responsabilidade do presidente da República diz ainda:
“Art. 28 — Tolher a liberdade da imprensa, impedindo arbitrariamente a publicação ou circulação dos jornais ou outros escritos impressos”, etc.
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Em dias da semana passada, nesta cidade do Rio de Janeiro, em plena Avenida Central, agentes de polícia e outros funcionários subalternos, da repartição do doutor Geminiano, saíram-se dos seus cuidados e apreenderam das mãos de vendedores e rasgaram in continenti1 exemplares da A Folha, jornal recentemente fundado e dirigido pelo conhecido escritor Medeiros e Albuquerque.
Não é segredo para ninguém que o jornal desse ilustrado e destemido jornalista vem, desde a sua fundação, mantendo uma campanha contra a venda aos Estados Unidos dos navios que o Brasil tomou à Alemanha, por ocasião de declarar a guerra a esta.
A campanha tem sido corajosa e tem deveras contundido profundamente o governo, por isso, todos que se julgam pavoneados pelo Catete2 andam irritadíssimos com o vespertino de Medeiros.
A coisa está posta no ponto de vista patriótico, ponto de vista em que não gosto de ver julgada qualquer questão.
Para fim, o que eu achava honesto e sério, de cavalheiro, era entregar os buques3 aos seus verdadeiros donos; o mais tem um nome feio que não quero pôr aqui. Mas, etc., etc. Os agentes, como ia eu dizendo, apreenderam os jornais de Medeiros e Albuquerque, diante do povo bestializado; e, ao outro dia, um único quotidiano teve a coragem de denunciar semelhante escândalo, assim mesmo com reservas e injustificável prudência.
Sou insuspeito para falar assim dos jornais, porque lhes devo muito; mas, por isso mesmo, julgo que a força da imprensa periga, desde que nessa questão de liberdade de pensamento não houver a mais perfeita solidariedade de vistas em defendê-la contra os atentados dos governos verdadeiramente poderosos e os que se fingem poderosos, como o atual.
E essa defesa deve esquecer qualquer outra circunstância que milite em favor ou desfavor do jornal.
Não se quer saber se o jornal A, atacado pelos alguazis4 da governança, tira mil ou um milhão de exemplares, se é escrito na língua morta de Rui de Pina ou na que os símile-clássicos de hoje chamam vasconço5 ou lá que seja.
O que se deve indagar primeiro é se todo o ataque a um jornal ou à sua liberdade de circulação não é uma ameaça aos outros. Hodie mihi...6
Nesse caso da A Folha, apesar de serôdios7 , os protestos vieram; e, ainda ontem, A Noite, na secção “Ecos e Novidades”, denuncia que o próprio diretor dos Correios foi, em pessoa, a determinada dependência, para impedir que aquele jornal fosse distribuído aos seus assinantes.
Até onde quererão ir os administradores do Brasil em sabujice?
(Lima Barreto. Feiras e mafuás, 1961.)
(1) In continenti: no mesmo momento, imediatamente, no mesmo instante, na hora.
(2) Catete: Palácio do Catete, sede da presidência da República.
(3) Buques: navios.
(4) Alguazil: funcionário inferior de administração ou de justiça; funcionário subalterno; oficial de diligências; meirinho, beleguim, esbirro.
(5) Vasconço: basco; (fig.) linguagem confusa, afetada, ininteligível.
(6) Hodie mihi, cras tibi: provérbio latino que significa “hoje a mim, amanhã a ti”, isto é, o que acontece hoje comigo pode acontecer amanhã com você.
(7) Serôdio: fora de tempo, tardio, atrasado
A campanha tem sido corajosa e tem deveras contundido profundamente o governo...
Partindo do sentido próprio com que o verbo contundir é comumente empregado nos esportes e nas atividades físicas em geral, descreva o sentido figurado com que Lima Barreto emprega tem contundido na frase em destaque.