(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Na crnica, Joo Alves descrito como
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Examine a charge do cartunista argentino Quino (1932- ). A charge explora, sobretudo, a oposio
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) O humor presente na crnica decorre, entre outros fatores, do fato de o cronista
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. Na crnica, o personagem seu Afredo descrito como uma pessoa
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) O cronista manifesta um juzo de valor sobre a sua prpria poca em:
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. Em Mas, como linguista, cultor do vernculo e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. (1o pargrafo), o cronista sugere que seu Afredo
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. Um trao caracterstico do gnero crnica, visvel no texto de Vinicius de Moraes,
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. (2 pargrafo) Em relao ao perodo do qual faz parte, a orao destacada exprime ideia de
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Est empregado em sentido figurado o termo destacado no seguinte trecho:
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. [Seu Afredo] perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? (2o pargrafo/3o pargrafo) Ao se adaptar este trecho para o discurso indireto, o verbo vais assume a seguinte forma:
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Em Contudo, no o afirmas em tomperemptrio: tudo me induz a esse clculo. (5 pargrafo), o termo destacado pode ser substitudo, sem prejuzo de sentido para o texto, por:
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. Observa-se no texto um desvio quanto s normas gramaticais referentes colocao pronominal em:
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia a crnica Anncio de Joo Alves, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954. Figura o anncio em um jornal que o amigo me mandou, e est assim redigido: procura de uma besta. A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes caractersticos: calada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas sees em consequncia de um golpe, cuja extenso pode alcanar de quatro a seis centmetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao clculo de que foi roubada, assim que ho sido falhas todas as indagaes. Quem, pois, apreend-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. Itamb do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a)Joo Alves Jnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado Joo Alves Jnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, j p no p. E tu mesmo, se no estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitrio de Itamb. Mas teu anncio continua um modelo no gnero, se no para ser imitado, ao menos como objeto de admirao literria. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. No escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condio rural. Pressa, no a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e s a 19 de novembro recorreste Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagaes. Falharam. Formulaste depois um raciocnio: houve roubo. S ento pegaste da pena, e traaste um belo e ntido retrato da besta. No disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste diz-lo de todos os seus membros locomotores. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa diviso da crina em duas sees, que teu zelo naturalista e histrico atribuiu com segurana a um jumento. Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comrcio, isto , do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que no teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, no o afirmas em tom peremptrio: tudo me induz a esse clculo. Revelas a a prudncia mineira, que no avana (ou no avanava) aquilo que no seja a evidncia mesma. clculo, raciocnio, operao mental e desapaixonada como qualquer outra, e no denncia formal. Finalmente deixando de lado outras excelncias de tua prosa til a declarao final: quem a apreender ou pelo menos notcia exata ministrar, ser razoavelmente remunerado. No prometes recompensa tentadora; no fazes praa de generosidade ou largueza; acenas com o razovel, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. J muito tarde para sairmos procura de tua besta, meu caro Joo Alves do Itamb; entretanto essa criao volta a existir, porque soubeste descrev-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e algum hoje a descobre, e muitos outros so informados da ocorrncia. Se lesses os anncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. J no h essa preciso de termos e essa graa no dizer, nem essa moderao nem essa atitude crtica. No h, sobretudo, esse amor tarefa bem-feita, que se pode manifestar at mesmo num anncio de besta sumida. (Fala, amendoeira, 2012.) Com base no ltimo pargrafo, a principal qualidade atribuda pelo cronista a Joo Alves
(UNESP - 2017/2 - 1FASE) Leia a crnica Seu Afredo, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953. Seu Afredo (ele sempre subtraa o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: Afredo Paiva, um seu criado...) tornou-se inesquecvel minha infncia porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, no ia muito l das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha me ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada p, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernculo (1) e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. Tratava-se de um mulato quarento, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupao lingustica perturbava s vezes a colocao pronominal. Um dia, numa fila de nibus, minha me ficou ligeiramente ressabiada (2) quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe queima-roupa, na segunda do singular: Onde vais assim to elegante? Ns lhe dvamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que j me foi dado ouvir. Uma vez, minha me, em meio lide (3) caseira, queixou-se do fatigante ramerro (4) do trabalho domstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: Dona Ldia, o que a senhora precisa fazer ir a um mdico e tomar a sua quilometragem. Diz que muito bo. De outra feita, minha tia Graziela, recm-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: , canto s vezes, de brincadeira... Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha me, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: No, ele assim mesmo. Isso no falta de respeito, no. excesso de... gramtica. Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou: Olhe aqui, dona Ldia, no leve a mal, mas essa menina, sua irm, se ela pensa que pode cantar no rdio com essa voz, t redondamente enganada. Nem em programa de calouro! E, a seguir, ponderou Agora, piano diferente. Pianista ela ! E acrescentou: Eximinista pianista! (Para uma menina com uma flor, 2009.) (1) vernculo: a lngua prpria de um pas; lngua nacional. (2) ressabiado: desconfiado. (3) lide: trabalho penoso, labuta. (4) ramerro: rotina. Em Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarado e falou [...] (12 pargrafo), a conjuno destacada pode ser substituda, sem prejuzo para o sentido do texto, por:
(UNESP - 2017 - 1 FASE) Leia o excerto deAuto da Barca do Infernodo escritor portugus Gil Vicente (1465?-1536?). A pea prefigura o destino das almas que chegam a um brao de mar onde se encontram duas barcas (embarcaes): uma destinada ao Paraso, comandada pelo anjo, e outra destinada ao Inferno, comandada pelo diabo. Vem um Frade com uma Moa pela mo []; e ele mesmo fazendo a baixa1comeou a danar, dizendo FRADE: Tai-rai-rai-ra-r ta-ri-ri-r; Tai-rai-rai-ra-r ta-ri-ri-r; T-t-ta-ri-rim-rim-r, huha! DIABO: Que isso, padre? Quem vai l? FRADE:Deo gratias2!Sou corteso. Diabo: Danas tambm o tordio3? FRADE: Por que no? V como sei. DIABO: Pois entrai, eu tangerei4e faremos um sero. E essa dama, porventura? FRADE: Por minha a tenho eu, e sempre a tive de meu. DIABO: Fizeste bem, que lindura! No vos punham l censura no vosso convento santo? FRADE: E eles fazem outro tanto! DIABO: Que preciosa clausura5! Entrai, padre reverendo! FRADE: Para onde levais gente? DIABO: Para aquele fogo ardente que no temestes vivendo. FRADE: Juro a Deus que no te entendo! E este hbito6no me vai7? DIABO: Gentil padre mundanal8, a Belzebu vos encomendo! FRADE: Corpo de Deus consagrado! Pela f de Jesus Cristo, que eu no posso entender isto! Eu hei de ser condenado? Um padre to namorado e tanto dado virtude? Assim Deus me d sade, que eu estou maravilhado! DIABO: No faamos mais detena9embarcai e partiremos; tomareis um par de remos. FRADE: No ficou isso na avena10. DIABO: Pois dada est j a sentena! FRADE: Por Deus! Essa seria ela? No vai em tal caravela minha senhora Florena? Como? Por ser namorado e folgar cuma mulher? Se h um frade de perder, com tanto salmo rezado?! DIABO: Ora ests bem arranjado! FRADE: Mas ests tu bem servido. DIABO: Devoto padre e marido, haveis de ser c pingado11 (Auto da Barca do Inferno, 2007.) 1baixa: dana popular no sculo XVI. 2Deo gratias: graas a Deus. 3tordio: outra dana popular no sculo XVI. 4tanger: fazer soar um instrumento. 5clausura: convento. 6hbito: traje religioso. 7val: vale. 8mundanal: mundano. 9detena: demora. 10avena: acordo. 11ser pingado: ser pingado com gotas de gordura fervendo (segundo o imaginrio popular, processo de tortura que ocorreria no inferno). No excerto, o escritor satiriza, sobretudo,