(UNICAMP - 2003 - 2 fase - Questão 11)
Nos romances naturalistas, a descrição dos espaços onde transcorre a ação é sempre decisiva. Em O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, o escravo fugido Amaro tem sua existência dividida entre dois domínios espaciais, um do mar, outro da terra. Leia os trechos abaixo:
O convés, tanto na coberta como na tolda, apresentava o aspecto de um acampamento nômade. A marinhagem, entorpecida pelo trabalho, caíra numa sonolência profunda, espalhada por ali ao relento, numa desordem geral de ciganos que não escolhem terreno para repousar. Pouco lhe importavam o chão úmido, as correntes de ar, as constipações, o beribéri. Embaixo era maior o atravancamento. Macas de lona suspensas em varais de ferro, umas sobre outras, encardidas como panos de cozinha, oscilavam à luz moribunda e macilenta das lanternas. Imagine-se o porão de um navio mercante carregado de miséria. No intervalo das peças, na meia escuridão dos recôncavos moviam-se os corpos seminus, indistintos. Respiravam um odor nauseabundo de cárcere, um cheiro acre de suor humano diluído em urina e alcatrão. Negros, de boca aberta, roncavam profundamente, contorcendo-se na inconsciência do sono. Viam-se torsos nus abraçando o convés, aspectos indecorosos que a luz evidenciava cruelmente.
–––––
O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. Nele morrera de febre amarela um portuguesinho recém-chegado. Mas o Bom-Crioulo, conquanto receasse as febres de mau caráter, não se importou com isso, tratando de esquecer o caso e instalando-se definitivamente. Todo dinheiro que apanhava era para compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”, enfeites, coisas sem valor, muitas vezes trazidas de bordo [...]. Pouco a pouco, o pequeno “cômodo” foi adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas, amontoandose de caixas vazias, búzios grosseiros e outros acessórios ornamentais. O leito era uma “cama de vento” já muito usada, sobre a qual Bom-Crioulo tinha o zelo de estender, pela manhã , quando se levantava, um grosso cobertor encarnado “para ocultar as nódoas”.
a) Identifique, nos textos acima, características dos ambientes descritos, determinantes do caráter de Amaro.
b) Como os dois espaços se relacionam especificamente com a tragédia pessoal de Amaro, o Bom Crioulo?