(UNIFESP - 2011)
[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar.
A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava.
Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)
O emprego da figura de linguagem conhecida como “prosopopeia” (ou “personificação”) põe mais em evidência a principal razão pela qual Sem-Pernas é estigmatizado. O trecho que contém essa figura é
A perna coxa se recusava a ajudá-lo.
Em cada canto estava um com uma borracha comprida.
(...) depois, não sabe como, as lágrimas secaram.
E a borracha zunia nas suas costas (...)
Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora.