(IME - 2020/2021 - 2ª fase)
Publicada em 1902, a partir de um trabalho de correspondente de guerra encomendado pelo jornal "A Província de São Paulo" ao engenheiro militar Euclides da Cunha, oriundo da Escola Militar da Praia Vermelha (atualmente, Instituto Militar de Engenharia), a obra "Os Sertões" aborda os acontecimentos da chamada guerra de Canudos, que foi o confronto entre um movimento popular missiânico e o Exército Nacional, de 1896 a 1897, no interior do estado da Bahia. Uma leitura obrigatória para a compreensão da sociedade e da cultura brasileira, a obra reflete a descoberta pelo autor de um "Brasil profundo", desconhecido pela elite intelectual e política do litoral, e se tornou obra canônica de expressão dos problemas e temas da nacionalidade. Em tom erudito, "Os Sertões" se caracteriza pelo encontro do estilo com os conceitos científicos, que são estetizados e transfigurados, para estabelecer um novo plano de realidade humana, por meio de uma escrita tortuosa, gramaticalmente rebuscada, marcada pela rica adjetivação e reinvenção lexical.
Texto 1
CAPÍTULO 3
A GUERRA DAS CAATINGAS
[1] Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra, pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais — guerreiros de cujas mãos [5] caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista — se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens. Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território — orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias — se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, [10] aos dois beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores.
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram [15] também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.
E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível...
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.
Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos [20] em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.
É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se
[25] afrontarem, serão varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos...
De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro...
A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, [30] outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem.
Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.
E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda.
[35] Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vareda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas...
Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projéteis dos atiradores [40] invisíveis batendo em cheio nas fileiras.
A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas. [45] Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o
antagonismo formidável da caatinga.
As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se [50] um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm à toa, num labirinto [55] de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem [60] pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; — enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projetis tio adversário.
De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.
[65] As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos...
(...)
[70] A luta é desigual. A força militar decai a um plano interior Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo [75] um seio carinhoso e amigo.
(...)
A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). 2ª ed. São Paulo: Editora Ciranda Cultural, 2018. p. 181-186.
*os números entre colchetes correspondem aos números das linhas do texto original.
"Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas..." (Texto 1, linhas 37 e 38).
O valor semântico do vocábulo "estrugidoramente" no trecho acima se aproxima de:
violentamente.
ruidosamente.
velozmente.
certeiramente.
mortalmente.