(IME - 2020/2021 - 2ª fase)
Texto 2
ESTADOS DE VIOLÊNCIA
1 A Guerra, na longa história dos homens, terá tido seus atores e suas cenas, seus heróis e
seus espaços. seus personagens e seus teatros. Diversidade incrível das fardas, dos costumes,
enfeites, armaduras, equipamentos. Multiplicidade dos terrenos: barro espesso ou poeira
asfixiante, brejos viscosos, desfiladeiros rochosos, prados gordurentos ou panícies sombrias,
5 colinas acidentadas, montanhas dentadas, muros grossos das cidades fortificadas, portões e
fossos profundos. Sem mesmo falar das táticas de combate, da evolução técnica das armas.
Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distinção entre guerras maiores e menores, grandes
e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de fois exércitos engajando forças
representando entidades políticas identificáveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres
10 ou marítimas, que os colocavam em contato com seu princípio de encerramento: vitória ou
derrota. É ainda possível essa forma pura de guerra, depois que as grandes e principais
potências dispõem da arma absoluta (o fogo nuclear), depois ainda que um sí possui uma
superioridade arrasadora das forças clássicas de destruição, tecnologias de reconhecimento,
técnicas de fundição de precisão, depois enfim que as democracias desenvolveram uma cultura
15 de negociação, de arbitragem em que o recurso à força nua é dado como inadequado, selvagem,
contraproducente? Imagina-se que no futuro ainda grandes potências mobilizem o conjunto de
suas forças vivas para se medirem?
Na trama visível, dilacerada das grandes guerras contemporâneas, reconhecem-se apenas
a paisagem cultural da guerra, as nervuras de sua representação dominante. Não se veem mais,
20 e tanto melhor, colunas de soldados em centenas de milhares chegando ao futuro campo de
batalha, dispondo-se em ordem para a batalha decisiva. Não se espera mais com um entusiasmo
ansioso a sanção das armas: duração da batalha, data de vitória ou da derrota (...) Os estados
de violência fazem aparecer uma multiplicidade de figuras novas: o terrorista, o chefe de facções,
o mercenário, o soldado profissional, o engenheiro de informática, o responsável da segurança
25 etc. Não exército disciplinado, mas redes dispersas, concorrentes, profissionais da violência.
Mudanças ainda no nível do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma planície, espaços largos, às
vezes colinas ou rios, em todo caso campanhas (para não levar em conta aqui guerras de cerco).
E depois vem o espetáculo desolador após a batalha: os inimigos como que abraçados na morte,
corpos juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silêncio depois de
30 tantos gritos e de vaias. O novo teatro é hoje a cidade. Não a cidade fortificada, em torno da qual
se entrincheira, mas a cidade viva dos transeuntes. A dos espaços públicos: mercados,
garagens, terraços de café, metrôs... A das ruas que francos atiradores isolados transformam em
teatro de feira para divertimentos atrozes (...)
Tempos e espaços, personagens e cadáveres. Aqui se trata apenas do regime de imagens
35 de violência armada que se acha transformado. A aposta filosófica sera dizer que acontece outra
coisa, e não a guerra, que se poderia chamar provisoriamente de "estado de violência", porque
eles se oporiam ao que os clássicos tinham definido como "estado de guerra" e também como
"estado de natureza" (...)
Diante da inquietante extravagância desses conflitos dificilmente identificáveis ou
40 codificáveis nos quadros da análise estratégica clássica, ouve-se mesmo: o pior estava por vir.
É preciso dizer que a polemologia (estudo da guerra) não reconhece mais seus filhos: nem seus
chefes responsáveis, nem seus soldados dóceis, nem seus heróis esplêndidos, nem seus mortos
no campo de honra. Chega-se mesmo a se queixar. Neste ponto, contudo, a nostalgia é
dificilmente suportável. Sobretutdo para lastimar guerras que às vezes nem mesmo foram vividas
45 pessoalmente. Estas boas velhas guerras, com bons velhos inimigos, fomentadas por Estados,
alegando "razões", deve-se recordar que foram também o instrumento das mais baixas
ambições, das mais loucas pretensões, dos mais sórdidos cálculos? Que elas acarretaram sem
falhar o sacrifício de milhões de homens que não pediam senão para viver, que elas esgotaram
precocemente civilizações desenvolvidas, conduziram culturas prestigiosas ao suicídio?
50 Resta, além de um pensamento nostálgico, compreender o que causa os estados atuais
de violência. Então, antes que falar da "nova guerra", de "guerra selvagem", "guerra sem a
guerra", de "guerra sem fim", de "guerra assimétrica", de "guerra civil generalizada", de "guerra
ruiva", é preciso elucidar, em lugar do jogo antigo da guerra e da paz, as estruturações destes
estados de violência (...) Como a filosofia clássica tinha conceituado o estado de guerra e de
55 natureza, seria preciso esboçar a análise filosófica dos estados de violência, como distrubuição
contemporânea das forças de destruição.
GROS, Frédéric. Estados de violência: ensaio sobre o fim da guerra. Tradução de José Augusto da Silva. Aparecida, SP. Editora Ideias & Letras, 2009. p. 227-232 (texto adaptado).
Considere o trecho do Texto 2 e as assertivas a seguir:
"(...) Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distinção entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de dois exércitos engajando forças representando entidades políticas identificáveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres ou marítimas, que os colocavam em contato com seu princípio de encerramento: vitória ou derrota" (linha 07 a 11).
I. O aspecto fundamental da guerra seria a manifestação dos chamados "estados de violência", envolvendo-se a população civil e os militares na forma de uma guerra total.
II. Apesar da grande diversidade de conflitos armados, o que poderia definir a guerra seria o embate entre instâncias políticas reconhecíveis, para além das ideologias e ódios entre os indivíduos.
III. A dimensão universal da guerra era ligada ao fato de ser travada para ganhar ou perder, em um enfrentamento militar considerado decisivo.
está(ão) correta(s) a(s) assertiva(s):
I e II, apenas.
II e III, apenas.
I e III, apenas.
III, apenas.
I, II e III.