(AFA - 2017)
LEITE DERRAMADO
“Um homem muito velho está num leito de hospital. E desfia a quem quiser ouvir suas memórias. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.”
Não sei por que você não me alivia a dor. Todo dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga sol no meu rosto. Não sei que graça pode achar dos meus esgares, é uma pontada cada vez que respiro. Às vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar insuportável, para ter alguns segundos de conforto, expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz. E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida. Mas nem assim você me dá os remédios, você é meio desumana. Acho que nem é da enfermagem, nunca vi essa cara sua por aqui. Claro, você é a minha filha que estava na contraluz, me dê um beijo. Eu ia mesmo lhe telefonar para me fazer companhia, me ler jornais, romances russos. Fica essa televisão ligada o dia inteiro, as pessoas aqui não são sociáveis. Não estou me queixando de nada, seria uma ingratidão com você e com o seu filho. Mas se o garotão está tão rico, não sei por que diabos não me interna em uma casa de saúde tradicional, de religiosas. Eu próprio poderia arcar com viagem e tratamento no estrangeiro, se o seu marido não me tivesse arruinado.
BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 10-11.
Assinale a alternativa que apresenta uma inferência INCORRETA.
O personagem acredita que a televisão ligada evita a comunicação entre as pessoas que dividem o ambiente.
Percebe-se um tom sarcástico nos três últimos períodos do excerto.
O grau aumentativo foi utilizado no substantivo “garotão” de forma pejorativa, ratificando a crítica ao neto.
A fala compulsiva do personagem tem como objetivo provocar piedade naqueles que estão ao seu redor.