(FUVEST - 2002 - 1a fase)
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o "deficit". Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.
(Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas)
Neste excerto, Brás Cubas discute as acusações dirigidas a seu cunhado Cotrim. A argumentação aí apresentada
faz com que, ao defender Cotrim, ele contribua, ironicamente, para confirmar essas acusações.
confirma a hipótese de que Machado de Assis, ao ascender socialmente, renegou suas origens e abandonou a crítica ao comportamento das elites.
visa demonstrar que as práticas de Cotrim não contavam com a conivência de Brás Cubas e da sociedade da época.
comprova a convicção machadiana de que os homens nascem bons, a sociedade é que os corrompe.
é moralmente impecável, pois distingue o lícito do ilícito, condenando explicitamente os desvios, como o contrabando e a tortura.