(FUVEST - 2024)
O SOBREVIVENTE
Impossível compor um poema a essa altura da evolução
[da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de
[verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as
[necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo
[dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)
Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia, 1930.
Entre o primeiro e o último verso, há uma aparente contradição, que, todavia, não se sustenta porque
os entraves à plenitude lírica são removidos.
os trovadores ainda inspiram os enamorados.
a sabedoria controla o poder das máquinas.
os heróis sempre ressuscitam neste mundo.
a poesia resiste à negatividade do seu tempo.