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(ENEM - 2023)Era um gato preto, como convinha a um

(ENEM - 2023)

Era um gato preto, como convinha a um cultor das boas letras, que já lera Poe traduzido por Baudelaire. Preto e gordo. E lerdo. Tão gordo e lerdo que a certa altura observei que ia perdendo inteiramente as qualidades características da raça, que são em suma o ódio de morte aos ratos. Já nem os afugentava! Os ratos de Ouro Preto são também dignos e solenes — não ria — tradicionalistas... descendentes de outros ratos que naqueles mesmos casarões presenciaram acontecimentos importantes da nossa história... No sobrado do desembargador Tomás Antônio Gonzaga, imagine o senhor uma reunião dos sonhadores inconfidentes, com os antepassados daqueles ratos a passearem pelo sótão ou mesmo pelo assoalho por entre as pernas dos homens absortos na esperança da independência nacional! E depois, os ancestres daqueles roedores que eu via agora deslizar sutilmente no meu quarto podiam ter subido pelo poste da ignomínia colonial, onde estava exposta a cabeça do Tiradentes! E quando as órbitas se descarnaram ignominiosamente, podiam até ter penetrado no recesso daquele crânio onde verdadeiramente ardera a literatura, com a simplicidade do heroísmo, a febre nacionalista...

ALPHONSUS, J. Contos e novelas. Rio de Janeiro: Imago; Brasília: INL, 1976.

 

Descrevendo seu gato, o narrador remete ao contexto e a protagonistas da Inconfidência para criar um efeito desconcertante centrado no

A

desenho imaginativo do casario colonial de Ouro Preto.

B

efeito de apagamento de limites entre ficção e realidade.

C

vínculo estabelecido entre animais urbanos e literatura.

D

questionamento sutil quanto à sanidade dos inconfidentes.

E

contraste entre austeridade pomposa e imagem repugnante.