(FGV - RJ - 2016)
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal-apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.
Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias.
Embora de fato pertençam ao Romantismo, as Memórias de um sargento de milícias não apresentam as características mais típicas e notórias desse movimento. No entanto, analisando-se o trecho aqui reproduzido, verifica-se que nele se apresenta claramente o seguinte traço do Romantismo:
preferência pela narração de aventuras fabulosas e extraordinárias.
tendência a emitir juízos morais sobre as condutas das personagens.
livre expressão de conteúdos eróticos incomuns e chocantes.
tematização franca e aberta da vida popular e cotidiana.
busca do raro e do exótico, como meio de fuga da realidade burguesa.