(UNESP - 2015 - 2 FASE)
Nota preliminar
1 – Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 – Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E — mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”,ninguém compreenderá que os meus pensamentos estão tristes.
3 – Assim tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo – num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva – e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma – é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim.
(Obra poética, 1965.)
Paisagem holandesa
Não me sais da memória. És tu, querida amiga,
Uma imagem que eu vi numa aguarela1 antiga.
Era na Holanda. Um fim de tarde. Um céu lavado.
Frondes abrindo no ar um pálio recortado...
5 Um moinho à beira d’água e imensa e desconforme
A pincelada verde-azul de um barco enorme.
A casaria além... Perto o cais refletindo
Uma barra de sombra entre as águas bulindo...
E, debruçada ao cais, olhando a tarde imensa,
10 Uma rapariguinha olha as águas e pensa...
É loira e triste. Nos seus olhos claros anda
A mesma paz que envolve a paisagem da Holanda.
Paira o silêncio... Uma ave passa, arminho2 e gaza3,
À flor d’água, acenando adeus com o lenço da asa...
15 É a saudade de Alguém que anda extasiado, a esmo,
Com a paisagem da Holanda escondida em si mesmo,
Com aquela rapariga a sofrer e a cismar
Num pôr de sol que dá vontade de chorar...
Ai não ser eu um moinho isolado e tristonho
20 Para viver como na paz de um grande sonho,
A refletir a minha vida singular
Na água dormente, na água azul do teu olhar...
(Toda uma vida de poesia, 1957.)
1 aguarela: aquarela.
2 arminho: pele ou pelo do arminho; muito alvo, muito branco, alvura (sentido figurado).
3 gaza: tecido fino, transparente, feito de seda ou algodão.
“Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção”.
Na oração transcrita, que inicia o comentário de Fernando Pessoa, explique por que, sob o ponto de vista gramatical, a forma verbal “acontece” está flexionada na terceira pessoa do singular.