Eu sentia o mesmo, mas de uma outra maneira.(linha 5), os termos destacados do texto 1 estabelecem um par de:
No texto 1, a linguagem potica e as marcas da oralidade se conjugam, manifestando-se linguisticamente em um traoestilstico marcante na obra do autor, a criao prolfica de neologismos. Assinale o item que evidencie esse processo de criao de palavras, destacado em negrito:
Em relao ao texto 2, pode-se afirmar que o poema
Fui subindo por um caminhozito descalo, um trilho tao estreito que mesmo duas serpentes no podiam namorar. A vila era menor do que parecia, suas casas estavam mais inteiras que as da minha terra. Havia, no entanto, excessivos refugiados. Dormiam nas ruas, nos passeios. (linhas 33 a 35) Em relao ao excerto retirado do texto 1 e de acordo com os preceitos da gramtica normativa, correto afirmar que:
Texto 1 Mia Couto e o pseudnimode Antonio EmlioLeite, nascido em Moambiqueem 1955. Em muitas obras, Mia Couto reinventa a lnguaportuguesa por meio de um poderoso lxico potico, sob a influnciados falares das vriasregies do Pas, criando um novo modelo de narrativa africana, imbudos vezes de uma cosmovisomtica. Terra Sonambula, seu primeiro romance, publicado em 1992, conta as peripciase provaesdo menino Muidinga e do velho Tuahir, que, fugindo da guerra civil aps a descolonizaode Moambique, acham abrigo em um nibus abandonadoem uma estrada.Muidinga aencontra os cadernos de Kindzu, cujos relatos esto relacionados ao passado do menino e da vida comunitria de Moambique. O ttuloda obra faz referncia a instabilidade do Pase, portanto, a falta de repouso e de paz de uma terra que permanece sonmbula. O REGRESSO DE MATIMATI 1 Farida me dera um gosto novo de viver. At ali me distrair nesse estar contente sem nenhuma felicidade. Depois de Farida me tornei encontrvel, em mim visvel. Muitas vezes me avisei do perigo desse amor. Nenhum de nos podia esperar muito: como ela, eu era apenas passageiro esquecido da qual viagem. Mas Farida me mandava calar, dedo sorrindo sobre os lbios. Eu temia sua inocncia: ela estava desamparada, sem ningum a 5 quem recorrer. Eu sentia o mesmo, mas de uma outra maneira. Talvez porque no tivesse um filho, notivesse ningum. Minha nica posse era o medo. Sim, foi para escapar do medo que sara de minha pequena vila. Porque esse sentimento j totalmente me ocupava: eu passeava com o medo na rua, dormia com o medo emcasa. Quem vive no medo precisa um mundo pequeno, um mundo que pode controlar. Nosso mundo, meu e de Farida, tinha agora o tamanho de um navio. Para mim, aquele era apenas um passageiro momento. Para Farida, 10 aquilo era o imutvel cumprir de um destino. Minha companheira comentava quase nada as realidades da vida corrente. Fantasitica, tudo para elaocorria no alm-visto. S uma vez beliscou o assunto da guerra. Inquiria-me como se habitasse um outro pas: Essa guerra algum dia ha de acabar? Acenei que sim. Mas meu corao se pequenou, constreitinho. Farida queria conhecer mais: saber o motivo 15 da guerra, a razo daquele desfile de infinitos lutos. Lembrei as palavras de Surendra: tinha que haver guerra,tinha que haver morte. E tudo era para qu? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. So o saque dava acesso s propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem ` esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre os outros. Pode acabar no pas, Kindzu. Mas para nos, dentro de ns essa guerra nunca mais vai terminar. 20 Farida no voltou a falar da guerra. Parecia no ter forca para enfrentar as matanas distantes. Simplesmente parasse aquela discrdia dentro de si, aquela angustia que lhe tirava o sossego. Era s essa pequeninapaz que ela sonhava. Quando, por fim, me despedi, ela me pediu: La, em Matimati, nunca fale de meu nome. Eles me odeiam. J em meu concho, remando para terra, surgia clara a razo do meu retorno a costa. Eu procurava apagar o ` 25 fogo que devorava aquela mulher. Nem sequer era generosidade. Precisava salvar Farida porque ela me salvava da misria de existir pouco. Havia, por fim, um algum que no estava metido no mesmo lodo em que todos chafundavamos, algum que mantinha a esperanca, louca que fosse. Farida, ao menos, tinha uma ilha com um invivel farol, um barco que viria de la onde habitam os anjonautas. Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como so nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de paixo. 30 puxava um novo lustro aquela terra em runas. Aquelas vises, dias antes, j tinham estado em meus olhos. Porem, agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembleia de belezas. Desembarquei sem conhecer por onde comear a busca. Desta vez no havia tanta gente na praia. A multido se tinha dispersado. Seria por consequncia da ameaa das autoridades? Fui subindo por um caminhozito descalo, um trilho tao estreito que mesmo duas serpentes no podiam namorar. A vila era menor do que parecia, suas casas estavam mais 35 inteiras que as da minha terra. Havia, no entanto, excessivos refugiados. Dormiam nas ruas, nos passeios. Por todo lado, se viam corpos estendidos, esteirados ao sol. Eu circulava por ali, divagante, devagaroso. Como comear para chegar ao filho de Farida? Procurar Irma Lucia? No, ela pouco adiantaria. O menino sara da Missao rumo aos matos. O melhor seria encontrar tiaEuzinha, ela saberia das pistas que Gaspar rumara. Mas, Euzinha: onde seria seu atual paradeiro? Estaria 40 entre aqueles deslocados da vila? Ou resistira no campo, na sua casinha-natal? Resolvi no resolver nada, deixar que a resposta acontecesse sozinha. Restava-me um tempo. Farida prometera no abandonar o barcoantes que eu trouxesse novidades de seu filho. Mesmo que viesse gente para resgatar o navio, mesmo assim ela aguardaria por mim. Trocamos jura contra jura. COUTO, Mia. Terra Sonambula. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 103- 105 (texto adaptado). E correto afirmar que o texto 1 - O regresso de Matimati:
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). incorreto afirmar que o texto 1:
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). O texto 1 utiliza do repertorio lingustico-cultural do Rio Grande do Sul, cujo sentido pode ser inferido por pessoas de outras regies do pas a partir dos conhecimentos previos do leitor e do contexto de uso da palavra. Em vista disso, identifique o vocbulo que pode substituir a palavra upa (linha 31), sem prejuzo do texto:
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Dentre os recursos semnticos utilizados no texto 1 para exprimir vrios significados, assinale a opo correta relacionada a figura de linguagem encontrada na expresso destacada no trecho abaixo: Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido (linhas 2 e 3)
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. (texto 1, linhas 67 a 69) No trecho acima, pode-se dizer que a coesao textualconstruda predominantemente
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Em relao ao texto 1, considere as seguintes afirmaes: I. A prclise em um medo que lhe vinha de baixo [...]. (linha 15) ocorre devido presena de palavraatrativa, uma conjuno subordinativa, de carter catafrico. II. Em [...] apertando a carabina com ambas as mos. (linha 29) o termo em destaque classifica-se como um pronome substantivo exercendo a funo de adjunto adnominal. III. Em Agora tu me pagas, salafrrio! (linha 57) a prclise obrigatria. Est(o) correta(s) apenas a(s) assertiva(s):
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direcao do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali ata igreja? Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. (texto 1, linhas 4 8) Nesse excerto do texto 1, em negrito, a cogitacao sobre a quantidade de passos a percorrer at a igreja foi
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direo do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Observe o excerto destacado do texto 1 abaixo: Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambar, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-sesenhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam a praa e as ruas em derredor. (linhas 36 a 40) Entre os segmentos do perodo em negrito, e possvel identificar uma relao lgico-semntica de
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direo do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). No que concerne a obra O Sobrado de rico Verissimo, correto afirmar que o texto 1
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direo do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Em relao ao texto 1, considere a regra utilizada para a colocao da vrgula no trecho em negrito a seguir: Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio (linha 55) A alternativa que segue a mesma regra:
(IME 2022/2023 - 2 fase) Texto 1 Erico Verissimo (1905 1975), nascido em Cruz Alta (RS), foi um dos escritores mais populares da chamada segunda fase modernista, que comeou na dcada de 1930. Sua obra mais conhecida o Tempo e o Vento, uma trilogia de romances, na qual ele narra a histria de um clfamiliar, os Terra Cambars, de 1745 at 1945, tendo como contexto formao da fronteira nacional na regio sul. O espao central desses romances a cidade fictcia de Santa F, situada no noroeste do Rio Grande do Sul. O texto O Sobrado, que integra o romance O Continente, versa sobre o chefe do cl, Licurgo Cambar, que resiste em casa ao cerco dos inimigos pertencentes ao cloposto, dos Amaral. Na obra, abordado um episdio da Revoluo Federalista (1893 1895), uma guerra civil entre dois grupos de ideias opostas: um que desejava aumentar os poderes do presidente da Repblica e outro que desejava uma maior autonomia aos estados. O SOBRADO 1 Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa F, que de to quieta e deserta parecia um cemitrio abandonado. Era tanto o silncio e to leve o ar, que se algum aguasse o ouvido talvez pudesse at escutar o sereno na solido. Agachado atras dum muro, Jos Lrio preparava-se para a ltima corrida. Quantos passos dali at a igreja? 5 Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. Tenente Liroca, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, suba pro alto do campanrio e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se algum aparecer pra tirar gua do poo, faa fogo sem piedade. Jos Lrio olhava a rua. Dez passos at a igreja. Mas quantos passos at a morte? Talvez cinco... ou 10 dois. Havia um atirador infernal na gua-furtada do Sobrado, espreita dos imprudentes que se aventurassem a cruzar a praa ou alguma rua a descoberto Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca no queria que ningum percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas nao conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revoluo porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas no se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora um medo que lhe vinha de baixo das tripas, e lhe subia pelo estomago at a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braos, a vontade. Medo doena; medo febre. Engraado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. 20 O tiroteio cessara ao entardecer. Talvez a munio da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria at uma provocao bonita. Vamos, Liroca, honra o leno encarnado. Mas qual! L estava aquela sensao fria de vazio e enjoo na boca do estmago, o minuano gelado nos midos. Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da me, pois as gentes do lado paterno eram corajosas 25 O av de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma revoluo, havia pouco mais dum ano tombara estripado numa carga de lanca, mas lutando ate o ultimo momento. Lrio macho, murmurou Liroca para si mesmo. Lrio macho. Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: Lrio macho Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as maos. Sentia o corpo dorido, a garganta 30 seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorr-los nuns cinco segundos, quando muito. Era s um upa e estava tudo terminado. Fez avanar cautelosamente a cabea e, com a quina do muro a tocar-lhe o meio da testa e a ponta do nariz, fechou o olho direito e com o esquerdo ficou espiando o Sobrado que l estava, do outro lado da praa, com sua fachada branca, a dupla fileira de janelas, a sacada de ferro e os altos muros de fortaleza. Havia no casaro algo de terrivelmente humano que fez o corao de JosLrio pulsar com mais 35 fora. Os federalistas tinham tomado a cidade havia quase uma semana, mas Licurgo Cambara, o intendente e chefe poltico republicano do municpio, encastelara-se em sua casa com toda a famlia e um grupo de correligionrios, e de l ainda oferecia resistncia. Enquanto o Sobrado no capitulasse, os revolucionrios no poderiam considerar-se senhores de Santa F, pois os atiradores da gua-furtada praticamente dominavam 40 a praa e as ruas em derredor. Por alguns instantes JosLrio ficou a mirar a fachada do casaro, e de repente a lembrana de que Maria Valria estava l dentro lhe varou o peito como um pontao de lana. Soltou um suspiro fundo e entrecortado, que foi quase um soluo. De novo se encolheu atrs do muro e tornou a olhar para a igreja. Se conseguisse chegar a salvo at a parede lateral, ficaria fora do alcance do atirador do Sobrado, e poderia entrar no campanrio 45 pela porta da sacristia. Vamos, Liroca, so uma corrida. Que te pode acontecer? O homem te enxerga, faz pontaria, atira e acerta. Uma bala na cabea. Pronto! Cais de cara no cho e est tudo liquidado. Acaba-se a agonia. Dizem que quando a bala entra no corpo da gente, no primeiro momento no di. Depois que vem a ardncia, como se ela fosse de ferro em brasa. Mas quando o ferimento mortal no se sente nada. O pior arma branca. Vamos, Liroca 50 Dez passos. Cinco segundos. Lrio macho, Lrio macho. Jos Lrio continuava imvel, olhando a rua. Ainda ontem um companheiro seu ousara atravessar aquele trecho luz do dia, num momento em que o tiroteio cessara. Ia cantando e fanfarronando. Viu-se de repente na gua-furtada do sobrado um claro acompanhado dum estampido, e o homem tombou. O sangue comeou a borbotar-lhe do peito e a empapar a terra. 55 Vamos, menino! Quem falava agora nos pensamentos de Liroca era seu pai, o velho Maneco Lrio. Sua voz spera como lixa vinha de longe, de um certo dia da infncia em que Liroca faltara escola e ao chegar a casa encontrara o pai atras da porta com um rebenque na mo. Agora tu me pagas, salafrrio! Liroca sara a correr como um doido na direo do fundo do quintal. Espera, poltro! E de repente o que o velho Maneco tinha nas mos no era mais o chicote, e sim as prprias vsceras, que lhe escorriam moles e visguentas da 60 ferida do ventre. Vamos, covarde! De sbito, como tomado dum demnio, Liroca ergueu-se, apertou a carabina contra o peito e deitou a correr na direo da igreja. Seus passos soaram fofos na terra. Deu cinco passadas e a meio caminho, sem olhar para o Sobrado, numa voz frentica de quem pede socorro, gritou: Pica-paus do inferno! Sou homem!. Continuou a correr e, ao chegar ao ponto morto atras da parede lateral da igreja, rojou-se ao solo e ali ficou, arquejante, com 65 o peito colado terra, o corao a bater acelerado, e sentindo entrar-lhe na boca e nas narinas talos de grama umida de sereno. A la fresca!, murmurou ele. A la fresca! Estava inteiro, estava salvo. Fechou os olhos e deixou-se quedar onde estava, babujando a terra com sua saliva grossa, a garganta a arder, e o corpo todo amolentado por uma fraqueza que lhe dava um trmulo desejo de chorar. VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente. 4 ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17- 19 (texto adaptado). Quanto ao texto 1 apresentado, considere as seguintes afirmaes: I.O autor e um regionalista tpico, uma vez que enfatizou a expressao de peculiaridades locais, tais como costumes, viso de mundo e modos de vida dos gachos, em uma perspectiva etnogrfica e folclrica, tendocomo objetivo a preservao dessas tradies. II.O autor apresenta os contrastes e confrontos do universo rural e urbano, das matrizes luso-brasileiras e dos fluxos migratrios na regio sul. III.A semelhana de outros autores do romance de 30, o autor abordou estruturas sociais, culturais e polticas do passado da regio sul, numa perspectiva crtica, praticando uma espcie de histria do tempo presente. Est(o) correta(s) apenas a(s) assertiva(s):