(IME - 2020/2021 - 2 fase) Texto 1 Captulo 3 - A GUERRA DAS CAATINGAS 1 Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a cincia, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes e formulam leis para a guerra, pondo em equao as batalhas, tm definido bem o papel das florestas como agente ttico precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sbios feldmarechais guerreiros de cujas mos 5caiu o franquisque herico trocado pelo lpis calculista se ouvissem a algum que s caatingas pobres cabe funo mais definida e grave que s grandes matas virgens. Porque estas, malgrado a sua importncia para a defesa do territrio orlando as fronteiras e quebrando o embate s invases, impedindo mobilizaes rpidas e impossibilitando a translao das artilharias se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, 10 aos dois beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra s emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratgia desencadeia os exrcitos. So uma varivel nas frmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores. Ao passo que as caatingas so um aliado incorruptvel do sertanejo em revolta. Entram 15tambm de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Tranam-se, impenetrveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multvias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jaguno faz-se o guerrilheiro-tugue, intangvel... As caatingas no o escondem apenas, amparam-no. Ao avist-las, no vero, uma coluna em marcha no se surpreende. Segue pelos caminhos 20 em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo cancula e com o desalinho natural s marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados. que nada pode assust-los. Certo, se os adversrios imprudentes com eles se 25 afrontarem, sero varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-o em estilhas a um breve choque de espadas e no crvel que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E l se vo, marchando, tranqilamente hericos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, 30 outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vem. H a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras. E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda. 35 Ento estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que v e no visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhes constritos na vareda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilho de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas... Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projteis dos atiradores 40invisveis batendo em cheio nas fileiras. A situao rapidamente engravesce, exigindo resolues enrgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por toda a extenso do caminho, prontas primeira voz; e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A fora, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expanso irradiante de cargas. 45Avana com rapidez. Os adversrios parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidvel da caatinga. As sees precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexvel, mas impenetrvel, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebata das mos as armas, e no vingam transp-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. V-se 50um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do sol joeirados pelas rvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponveis, fervilhando espinhos... Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm toa, num labirinto 55de galhos. Caem, presos pelos laos corredios dos quips reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortssimos tentculos. Debatem-se desesperadamente at deixarem em pedaos as fardas, entre as garras felinas de acleos recurvos das macambiras... Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a disperso do tumulto. Atiram a esmo, sem 60pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os prprios companheiros. Seguem reforos. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confuso e a desordem; enquanto em torno, circulando-os, rtmicos, fulminantes, seguros, terrveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projetis tio adversrio. De repente cessam. Desaparece o inimigo que ningum viu. 65 As sees voltam desfalcadas para a coluna, depois de inteis pesquisas nas macegas. E voltam como se sassem de recontro brao a brao, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos.... . 70 A luta desigual. A fora militar decai a um plano interior Batem-na o homem e a terra. E quando o serto estua nos bochornos dos estios longos no difcil prever a quem cabe a vitria. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de ao e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui retaguarda, fugindo ante o deserto ameaador e estril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo 75 um seio carinhoso e amigo. (...) A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomvel. um tit bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exrcitos. CUNHA, Euclides da.Os Sertes(Campanha de Canudos). 2 ed. So Paulo: Editora Ciranda Cultural, 2018. p. 181-186. Texto 2 ESTADOS DE VIOLNCIA 1 A Guerra, na longa histria dos homens, ter tido seus atores e suas cenas, seus heris e seus espaos. seus personagens e seus teatros. Diversidade incrvel das fardas, dos costumes, enfeites, armaduras, equipamentos. Multiplicidade dos terrenos: barro espesso ou poeira asfixiante, brejos viscosos, desfiladeiros rochosos, prados gordurentos ou pancies sombrias, 5 colinas acidentadas, montanhas dentadas, muros grossos das cidades fortificadas, portes e fossos profundos. Sem mesmo falar das tticas de combate, da evoluo tcnica das armas. Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distino entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de fois exrcitos engajando foras representando entidades polticas identificveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres 10 ou martimas, que os colocavam em contato com seu princpio de encerramento: vitria ou derrota. ainda possvel essa forma pura de guerra, depois que as grandes e principais potncias dispem da arma absoluta (o fogo nuclear), depois ainda que um s possui uma superioridade arrasadora das foras clssicas de destruio, tecnologias de reconhecimento, tcnicas de fundio de preciso, depois enfim que as democracias desenvolveram uma cultura 15 de negociao, de arbitragem em que o recurso fora nua dado como inadequado, selvagem, contraproducente? Imagina-se que no futuro ainda grandes potncias mobilizem o conjunto de suas foras vivas para se medirem? Na trama visvel, dilacerada das grandes guerras contemporneas, reconhecem-se apenas a paisagem cultural da guerra, as nervuras de sua representao dominante. No se veem mais, 20 e tanto melhor, colunas de soldados em centenas de milhares chegando ao futuro campo de batalha, dispondo-se em ordem para a batalha decisiva. No se espera mais com um entusiasmo ansioso a sano das armas: durao da batalha, data de vitria ou da derrota (...) Os estados de violncia fazem aparecer uma multiplicidade de figuras novas: o terrorista, o chefe de faces, o mercenrio, o soldado profissional, o engenheiro de informtica, o responsvel da segurana 25 etc. No exrcito disciplinado, mas redes dispersas, concorrentes, profissionais da violncia. Mudanas ainda no nvel do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma plancie, espaos largos, s vezes colinas ou rios, em todo caso campanhas (para no levar em conta aqui guerras de cerco). E depois vem o espetculo desolador aps a batalha: os inimigos como que abraados na morte, corpos juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silncio depois de 30tantos gritos e de vaias. O novo teatro hoje a cidade. No a cidade fortificada, em torno da qual se entrincheira, mas a cidade viva dos transeuntes. A dos espaos pblicos: mercados, garagens, terraos de caf, metrs... A das ruas que francos atiradores isolados transformam em teatro de feira para divertimentos atrozes (...) Tempos e espaos, personagens e cadveres. Aqui se trata apenas do regime de imagens 35 de violncia armada que se acha transformado. A aposta filosfica sera dizer que acontece outra coisa, e no a guerra, que se poderia chamar provisoriamente de estado de violncia, porque eles se oporiam ao que os clssicos tinham definido como estado de guerra e tambm como estado de natureza (...) Diante da inquietante extravagncia desses conflitos dificilmente identificveis ou 40 codificveis nos quadros da anlise estratgica clssica, ouve-se mesmo: o pior estava por vir. preciso dizer que a polemologia (estudo da guerra) no reconhece mais seus filhos: nem seus chefes responsveis, nem seus soldados dceis, nem seus heris esplndidos, nem seus mortos no campo de honra. Chega-se mesmo a se queixar. Neste ponto, contudo, a nostalgia dificilmente suportvel. Sobretutdo para lastimar guerras que s vezes nem mesmo foram vividas 45pessoalmente. Estas boas velhas guerras, com bons velhos inimigos, fomentadas por Estados, alegando razes, deve-se recordar que foram tambm o instrumento das mais baixas ambies, das mais loucas pretenses, dos mais srdidos clculos? Que elas acarretaram sem falhar o sacrifcio de milhes de homens que no pediam seno para viver, que elas esgotaram precocemente civilizaes desenvolvidas, conduziram culturas prestigiosas ao suicdio? 50 Resta, alm de um pensamento nostlgico, compreender o que causa os estados atuais de violncia. Ento, antes que falar da nova guerra, de guerra selvagem, guerra sem a guerra, de guerra sem fim, de guerra assimtrica, de guerra civil generalizada, de guerra ruiva, preciso elucidar, em lugar do jogo antigo da guerra e da paz, as estruturaes destes estados de violncia (...) Como a filosofia clssica tinha conceituado o estado de guerra e de 55natureza, seria preciso esboar a anlise filosfica dos estados de violncia, como distrubuio contempornea das foras de destruio. GROS, Frdric.Estados de violncia: ensaio sobre o fim da guerra.Traduo de Jos Augusto da Silva. Aparecida, SP. Editora Ideias Letras, 2009. p. 227-232 (texto adaptado). Considere as assertivas a seguir: I. O texto 1 estabelece uma relao entre a ttica de combate e a caatinga que era ignorada pelos estudos clssicos da guerra. II. No texto 1, o narrador demonstra uma admirao pelo jaguno devido sua astcia e adaptabilidade no combate. III. O texto 2 afirma que a violncia armada atual no pode ser considerada como guerra. IV. No texto 1 e 2, manifesta-se um ponto de vista de repdio aos conflitos armados. est(o) correta(s) a(s) assertiva(s):
(IME - 2020/2021 - 2 fase) Publicada em 1902, a partir de um trabalho de correspondente de guerra encomendado pelo jornal A Provncia de So Paulo ao engenheiro militar Euclides da Cunha, oriundo da Escola Militar da Praia Vermelha (atualmente, Instituto Militar de Engenharia), a obra Os Sertes aborda os acontecimentos da chamada guerra de Canudos, que foi o confronto entre um movimento popular missinico e o Exrcito Nacional, de 1896 a 1897, no interior do estado da Bahia. Uma leitura obrigatria para a compreenso da sociedade e da cultura brasileira, a obra reflete a descoberta pelo autor de um Brasil profundo, desconhecido pela elite intelectual e poltica do litoral, e se tornou obra cannica de expresso dos problemas e temas da nacionalidade. Em tom erudito, Os Sertes se caracteriza pelo encontro do estilo com os conceitos cientficos, que so estetizados e transfigurados, para estabelecer um novo plano de realidade humana, por meio de uma escrita tortuosa, gramaticalmente rebuscada, marcada pela rica adjetivao e reinveno lexical. Texto 1 Captulo 3 - A GUERRA DAS CAATINGAS 1 Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a cincia, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes e formulam leis para a guerra, pondo em equao as batalhas, tm definido bem o papel das florestas como agente ttico precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sbios feldmarechais guerreiros de cujas mos 5caiu o franquisque herico trocado pelo lpis calculista se ouvissem a algum que s caatingas pobres cabe funo mais definida e grave que s grandes matas virgens. Porque estas, malgrado a sua importncia para a defesa do territrio orlando as fronteiras e quebrando o embate s invases, impedindo mobilizaes rpidas e impossibilitando a translao das artilharias se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, 10 aos dois beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra s emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratgia desencadeia os exrcitos. So uma varivel nas frmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores. Ao passo que as caatingas so um aliado incorruptvel do sertanejo em revolta. Entram 15tambm de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Tranam-se, impenetrveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multvias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jaguno faz-se o guerrilheiro-tugue, intangvel... As caatingas no o escondem apenas, amparam-no. Ao avist-las, no vero, uma coluna em marcha no se surpreende. Segue pelos caminhos 20 em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo cancula e com o desalinho natural s marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados. que nada pode assust-los. Certo, se os adversrios imprudentes com eles se 25 afrontarem, sero varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-o em estilhas a um breve choque de espadas e no crvel que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E l se vo, marchando, tranqilamente hericos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, 30 outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vem. H a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras. E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda. 35 Ento estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que v e no visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhes constritos na vareda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilho de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas... Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projteis dos atiradores 40invisveis batendo em cheio nas fileiras. A situao rapidamente engravesce, exigindo resolues enrgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por toda a extenso do caminho, prontas primeira voz; e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A fora, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expanso irradiante de cargas. 45Avana com rapidez. Os adversrios parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidvel da caatinga. As sees precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexvel, mas impenetrvel, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebata das mos as armas, e no vingam transp-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. V-se 50um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do sol joeirados pelas rvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponveis, fervilhando espinhos... Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm toa, num labirinto 55de galhos. Caem, presos pelos laos corredios dos quips reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortssimos tentculos. Debatem-se desesperadamente at deixarem em pedaos as fardas, entre as garras felinas de acleos recurvos das macambiras... Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a disperso do tumulto. Atiram a esmo, sem 60pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os prprios companheiros. Seguem reforos. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confuso e a desordem; enquanto em torno, circulando-os, rtmicos, fulminantes, seguros, terrveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projetis tio adversrio. De repente cessam. Desaparece o inimigo que ningum viu. 65 As sees voltam desfalcadas para a coluna, depois de inteis pesquisas nas macegas. E voltam como se sassem de recontro brao a brao, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos.... . 70 A luta desigual. A fora militar decai a um plano interior Batem-na o homem e a terra. E quando o serto estua nos bochornos dos estios longos no difcil prever a quem cabe a vitria. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de ao e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui retaguarda, fugindo ante o deserto ameaador e estril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo 75 um seio carinhoso e amigo. (...) A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomvel. um tit bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exrcitos. CUNHA, Euclides da.Os Sertes(Campanha de Canudos). 2 ed. So Paulo: Editora Ciranda Cultural, 2018. p. 181-186. Texto 2 ESTADOS DE VIOLNCIA 1 A Guerra, na longa histria dos homens, ter tido seus atores e suas cenas, seus heris e seus espaos. seus personagens e seus teatros. Diversidade incrvel das fardas, dos costumes, enfeites, armaduras, equipamentos. Multiplicidade dos terrenos: barro espesso ou poeira asfixiante, brejos viscosos, desfiladeiros rochosos, prados gordurentos ou pancies sombrias, 5 colinas acidentadas, montanhas dentadas, muros grossos das cidades fortificadas, portes e fossos profundos. Sem mesmo falar das tticas de combate, da evoluo tcnica das armas. Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distino entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de fois exrcitos engajando foras representando entidades polticas identificveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres 10 ou martimas, que os colocavam em contato com seu princpio de encerramento: vitria ou derrota. ainda possvel essa forma pura de guerra, depois que as grandes e principais potncias dispem da arma absoluta (o fogo nuclear), depois ainda que um s possui uma superioridade arrasadora das foras clssicas de destruio, tecnologias de reconhecimento, tcnicas de fundio de preciso, depois enfim que as democracias desenvolveram uma cultura 15 de negociao, de arbitragem em que o recurso fora nua dado como inadequado, selvagem, contraproducente? Imagina-se que no futuro ainda grandes potncias mobilizem o conjunto de suas foras vivas para se medirem? Na trama visvel, dilacerada das grandes guerras contemporneas, reconhecem-se apenas a paisagem cultural da guerra, as nervuras de sua representao dominante. No se veem mais, 20 e tanto melhor, colunas de soldados em centenas de milhares chegando ao futuro campo de batalha, dispondo-se em ordem para a batalha decisiva. No se espera mais com um entusiasmo ansioso a sano das armas: durao da batalha, data de vitria ou da derrota (...) Os estados de violncia fazem aparecer uma multiplicidade de figuras novas: o terrorista, o chefe de faces, o mercenrio, o soldado profissional, o engenheiro de informtica, o responsvel da segurana 25 etc. No exrcito disciplinado, mas redes dispersas, concorrentes, profissionais da violncia. Mudanas ainda no nvel do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma plancie, espaos largos, s vezes colinas ou rios, em todo caso campanhas (para no levar em conta aqui guerras de cerco). E depois vem o espetculo desolador aps a batalha: os inimigos como que abraados na morte, corpos juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silncio depois de 30tantos gritos e de vaias. O novo teatro hoje a cidade. No a cidade fortificada, em torno da qual se entrincheira, mas a cidade viva dos transeuntes. A dos espaos pblicos: mercados, garagens, terraos de caf, metrs... A das ruas que francos atiradores isolados transformam em teatro de feira para divertimentos atrozes (...) Tempos e espaos, personagens e cadveres. Aqui se trata apenas do regime de imagens 35 de violncia armada que se acha transformado. A aposta filosfica sera dizer que acontece outra coisa, e no a guerra, que se poderia chamar provisoriamente de estado de violncia, porque eles se oporiam ao que os clssicos tinham definido como estado de guerra e tambm como estado de natureza (...) Diante da inquietante extravagncia desses conflitos dificilmente identificveis ou 40 codificveis nos quadros da anlise estratgica clssica, ouve-se mesmo: o pior estava por vir. preciso dizer que a polemologia (estudo da guerra) no reconhece mais seus filhos: nem seus chefes responsveis, nem seus soldados dceis, nem seus heris esplndidos, nem seus mortos no campo de honra. Chega-se mesmo a se queixar. Neste ponto, contudo, a nostalgia dificilmente suportvel. Sobretutdo para lastimar guerras que s vezes nem mesmo foram vividas 45pessoalmente. Estas boas velhas guerras, com bons velhos inimigos, fomentadas por Estados, alegando razes, deve-se recordar que foram tambm o instrumento das mais baixas ambies, das mais loucas pretenses, dos mais srdidos clculos? Que elas acarretaram sem falhar o sacrifcio de milhes de homens que no pediam seno para viver, que elas esgotaram precocemente civilizaes desenvolvidas, conduziram culturas prestigiosas ao suicdio? 50 Resta, alm de um pensamento nostlgico, compreender o que causa os estados atuais de violncia. Ento, antes que falar da nova guerra, de guerra selvagem, guerra sem a guerra, de guerra sem fim, de guerra assimtrica, de guerra civil generalizada, de guerra ruiva, preciso elucidar, em lugar do jogo antigo da guerra e da paz, as estruturaes destes estados de violncia (...) Como a filosofia clssica tinha conceituado o estado de guerra e de 55natureza, seria preciso esboar a anlise filosfica dos estados de violncia, como distrubuio contempornea das foras de destruio. GROS, Frdric.Estados de violncia: ensaio sobre o fim da guerra.Traduo de Jos Augusto da Silva. Aparecida, SP. Editora Ideias Letras, 2009. p. 227-232 (texto adaptado). Comparando os Textos 1 e 2 em relao aos tipos textuais, correto afirmar que
(IME - 2020/2021 - 2 fase) Resta, alm de um pensamento nostlgico, compreender o que causa os estados atuais de violncia.Entoantes que falar da nova guerra, de guerra selvagem, de guerra sem a guerra, de guerra sem fim, de guerra assimtrica, de guerra civil generalizada, de guerra ruiva, preciso elucidar,em lugar dojogo antigo da guerra e da paz, as estruturaes destes estados de violncia (...)Comoa filosofia clssica tinha conceituado o estado de guerra e de natureza, seria preciso esboar a anlise filosfica dos estados de violncia, como distribuio contempornea das foras de destruio (Texto 2, linhas 50 a 56). As expresses que podem substituir os termos destacados em negrito no trecho acima, sem que o sentido do texto seja alterado, so respectivamente:
(IME - 2020/2021 - 2 fase) Texto 2 ESTADOS DE VIOLNCIA 1 A Guerra, na longa histria dos homens, ter tido seus atores e suas cenas, seus heris e seus espaos. seus personagens e seus teatros. Diversidade incrvel das fardas, dos costumes, enfeites, armaduras, equipamentos. Multiplicidade dos terrenos: barro espesso ou poeira asfixiante, brejos viscosos, desfiladeiros rochosos, prados gordurentos ou pancies sombrias, 5 colinas acidentadas, montanhas dentadas, muros grossos das cidades fortificadas, portes e fossos profundos. Sem mesmo falar das tticas de combate, da evoluo tcnica das armas. Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distino entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de fois exrcitos engajando foras representando entidades polticas identificveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres 10 ou martimas, que os colocavam em contato com seu princpio de encerramento: vitria ou derrota. ainda possvel essa forma pura de guerra, depois que as grandes e principais potncias dispem da arma absoluta (o fogo nuclear), depois ainda que um s possui uma superioridade arrasadora das foras clssicas de destruio, tecnologias de reconhecimento, tcnicas de fundio de preciso, depois enfim que as democracias desenvolveram uma cultura 15 de negociao, de arbitragem em que o recurso fora nua dado como inadequado, selvagem, contraproducente? Imagina-se que no futuro ainda grandes potncias mobilizem o conjunto de suas foras vivas para se medirem? Na trama visvel, dilacerada das grandes guerras contemporneas, reconhecem-se apenas a paisagem cultural da guerra, as nervuras de sua representao dominante. No se veem mais, 20 e tanto melhor, colunas de soldados em centenas de milhares chegando ao futuro campo de batalha, dispondo-se em ordem para a batalha decisiva. No se espera mais com um entusiasmo ansioso a sano das armas: durao da batalha, data de vitria ou da derrota (...) Os estados de violncia fazem aparecer uma multiplicidade de figuras novas: o terrorista, o chefe de faces, o mercenrio, o soldado profissional, o engenheiro de informtica, o responsvel da segurana 25 etc. No exrcito disciplinado, mas redes dispersas, concorrentes, profissionais da violncia. Mudanas ainda no nvel do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma plancie, espaos largos, s vezes colinas ou rios, em todo caso campanhas (para no levar em conta aqui guerras de cerco). E depois vem o espetculo desolador aps a batalha: os inimigos como que abraados na morte, corpos juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silncio depois de 30tantos gritos e de vaias. O novo teatro hoje a cidade. No a cidade fortificada, em torno da qual se entrincheira, mas a cidade viva dos transeuntes. A dos espaos pblicos: mercados, garagens, terraos de caf, metrs... A das ruas que francos atiradores isolados transformam em teatro de feira para divertimentos atrozes (...) Tempos e espaos, personagens e cadveres. Aqui se trata apenas do regime de imagens 35 de violncia armada que se acha transformado. A aposta filosfica sera dizer que acontece outra coisa, e no a guerra, que se poderia chamar provisoriamente de estado de violncia, porque eles se oporiam ao que os clssicos tinham definido como estado de guerra e tambm como estado de natureza (...) Diante da inquietante extravagncia desses conflitos dificilmente identificveis ou 40 codificveis nos quadros da anlise estratgica clssica, ouve-se mesmo: o pior estava por vir. preciso dizer que a polemologia (estudo da guerra) no reconhece mais seus filhos: nem seus chefes responsveis, nem seus soldados dceis, nem seus heris esplndidos, nem seus mortos no campo de honra. Chega-se mesmo a se queixar. Neste ponto, contudo, a nostalgia dificilmente suportvel. Sobretutdo para lastimar guerras que s vezes nem mesmo foram vividas 45pessoalmente. Estas boas velhas guerras, com bons velhos inimigos, fomentadas por Estados, alegando razes, deve-se recordar que foram tambm o instrumento das mais baixas ambies, das mais loucas pretenses, dos mais srdidos clculos? Que elas acarretaram sem falhar o sacrifcio de milhes de homens que no pediam seno para viver, que elas esgotaram precocemente civilizaes desenvolvidas, conduziram culturas prestigiosas ao suicdio? 50 Resta, alm de um pensamento nostlgico, compreender o que causa os estados atuais de violncia. Ento, antes que falar da nova guerra, de guerra selvagem, guerra sem a guerra, de guerra sem fim, de guerra assimtrica, de guerra civil generalizada, de guerra ruiva, preciso elucidar, em lugar do jogo antigo da guerra e da paz, as estruturaes destes estados de violncia (...) Como a filosofia clssica tinha conceituado o estado de guerra e de 55natureza, seria preciso esboar a anlise filosfica dos estados de violncia, como distrubuio contempornea das foras de destruio. GROS, Frdric.Estados de violncia: ensaio sobre o fim da guerra.Traduo de Jos Augusto da Silva. Aparecida, SP. Editora Ideias Letras, 2009. p. 227-232 (texto adaptado). Considere o trecho do Texto 2 e as assertivas a seguir: (...) Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a distino entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadeiras e degradadas, era essa forma pura de dois exrcitos engajando foras representando entidades polticas identificveis, afrontando-se em batalhas decisivas, terrestres ou martimas, que os colocavam em contato com seu princpio de encerramento: vitria ou derrota (linha 07 a 11). I. O aspecto fundamental da guerra seria a manifestao dos chamados estados de violncia, envolvendo-se a populao civil e os militares na forma de uma guerra total. II. Apesar da grande diversidade de conflitos armados, o que poderia definir a guerra seria o embate entre instncias polticas reconhecveis, para alm das ideologias e dios entre os indivduos. III. A dimenso universal da guerra era ligada ao fato de ser travada para ganhar ou perder, em um enfrentamento militar considerado decisivo. est(o) correta(s) a(s) assertiva(s):
(IME - 2020/2021 - 2 fase) Considere os vocbulos do Texto 2 destacados no trecho a seguir: Os estados de violncia fazem aparecer uma multiplicidade de figuas novas: o terrorista, o chefe de faces, o mercenrio,o soldado profissional, o engenheiro de informtica, o responsvel da segurana etc.Noexrcito disciplinado,masredes dispersas, concorrenes, profissionais da violncia. Mudanasaindano nvel do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma plancie, espaos largos,s vezescolinas ou rios, em todo caso campanhas (para no levar em conta aqui guerras de cerco). E depois vem o espetculo desolador aps a batalha: os inimigos como que abraados na morte, corpos juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silncio depois de tantos gritos e de vaias. O novo teatro hoje a cidade. (linhas 22 a 30) A anlise dos elementos em negrito no texto mostra que o operador
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de. O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. O soneto XIII de Via-Lctea, coleo publicada em 1888 no livro Poesias, o texto mais famoso da antologia, obra de estreia do poeta Olavo Bilac. O texto, cuidadosamente ritmado, suas rimas e a escolha da forma fixa revelam rigor formal e estilstico caros ao movimento parnasiano; o tema do poema, no entanto, entra em coliso com o tema da literatura tpica do movimento, tal como concebido no continente europeu. Texto 2 XIII 1 Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, plido de espanto 5E conversamos toda a noite, enquanto A Via-lctea, como um plio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo cu deserto. 10Direis agora: Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando esto contigo? E eu vos direi: Amai para entend-las! Pois s quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. BILAC, Olavo. Antologia: Poesias. Martin Claret, 2002. p. 37-55. Via-Lctea. Disponvel em: . Acesso em: 19/08/2019. Quanto aos textos apresentados, assinale a afirmativa que apresenta uma incorreo.
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. O soneto XIII de Via-Lctea, coleo publicada em 1888 no livro Poesias, o texto mais famoso da antologia, obra de estreia do poeta Olavo Bilac. O texto, cuidadosamente ritmado, suas rimas e a escolha da forma fixa revelam rigor formal e estilstico caros ao movimento parnasiano; o tema do poema, no entanto, entra em coliso com o tema da literatura tpica do movimento, tal como concebido no continente europeu. Texto 2 XIII 1 Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, plido de espanto 5E conversamos toda a noite, enquanto A Via-lctea, como um plio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo cu deserto. 10Direis agora: Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando esto contigo? E eu vos direi: Amai para entend-las! Pois s quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. BILAC, Olavo.Antologia: Poesias. Martin Claret, 2002. p. 37-55. Via-Lctea. Disponvel em: . Acesso em: 19/08/2019. Sobre os Textos 1 e 2, analise as afirmaes abaixo: I. Os dois textos abordam tipos de estados alterados de conscincia que se contrapem experincia da vida cotidiana. II. Ambos os textos fazem uma apologia loucura, segundo a qual a condio de insanidade pode revelar as mazelas morais da sociedade e da cultura. III. Ambos estabelecem a apologia da razo compreendida como a faculdade superior do homem. IV. Os dois textos realizam uma crtica ao cientificismo que considera a possibilidade de estabelecer uma linha de fronteira entre a sanidade e a loucura. Em relao s afirmaes, est(o) correta(s):
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. O soneto XIII de Via-Lctea, coleo publicada em 1888 no livro Poesias, o texto mais famoso da antologia, obra de estreia do poeta Olavo Bilac. O texto, cuidadosamente ritmado, suas rimas e a escolha da forma fixa revelam rigor formal e estilstico caros ao movimento parnasiano; o tema do poema, no entanto, entra em coliso com o tema da literatura tpica do movimento, tal como concebido no continente europeu. Texto 2 XIII 1 Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, plido de espanto 5E conversamos toda a noite, enquanto A Via-lctea, como um plio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo cu deserto. 10Direis agora: Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando esto contigo? E eu vos direi: Amai para entend-las! Pois s quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. BILAC, Olavo.Antologia: Poesias. Martin Claret, 2002. p. 37-55. Via-Lctea. Disponvel em: . Acesso em: 19/08/2019. Segundo o Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, bacamarte uma antiga arma de fogo de cano largo e capa campnula (HOUAUISS, A. VILLAR, M. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, 1.ed. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2009). A escolha do nome da personagem central da trama do conto O Alienista antecipa:
(IME - 2019/2020- 2 fase) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de. O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. (Texto 1, linhas 24 a 28). luz da gramtica normativa, considere as seguintes afirmaes: I. O travesso utilizado em Trata-se de coisa mais alta [...] especifica a mudana de interlocutor no dilogo. II. As vrgulas empregadas em A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora [...] podem ser substitudas por travesses, sem prejuzo para a correo. III. No trecho [...] nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante., as vrgulas so empregadas com a finalidade de isolar o termo de valor explicativo. Em relao s afirmaes, est(o) correta(s):
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. Com a finalidade de preservar a coerncia e a correo gramatical do texto, constata-se, no trecho abaixo, o uso de um elemento coesivo cuja funo anafrica. Assim se explicam os monlogos que ele fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. (Texto 1, linhas 12 a 15) Podemos afirmar que o vocbulo te em negrito faz referncia ao()
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. No Texto 1, o alienista Simo Bacamarte descrito como um estudioso que disfara, sob a aparncia de humildade diante dos desafios do saber cientfico, a convico da superioridade do cientista em relao s outras pessoas. Assinale o trecho que condiz com essa afirmativa.
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019. O vocbulo comiserao (Texto 1, linha 78) se aproxima semanticamente de:
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiamo, declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. (Texto 1, linhas 41 a 43). Assinale a alternativa na qual o(s) vocbulo(s) acentuado(s) recebe(m) o acento grfico com base na mesma justificativa gramatical utilizada na palavra em destaque:
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) A primeira publicao do conto O Alienista, de Machado de Assis, ocorreu como folhetim na revista carioca A Estao, entre os anos de 1881 e 1882. Nessa mesma poca, uma grande reforma educacional efetuou-se no Brasil, criando, dentre outras, a cadeira de Clnica Psiquitrica. nesse contexto de uma psiquiatria ainda embrionria que Machado prope sua crtica cida, reveladora da escassez de conhecimento cientfico e da abundncia de vaidades, concomitantemente. A obra deixa ver as relaes promscuas entre o poder mdico que se pretendia baluarte da cincia e o poder poltico tal como era exercido em Itagua, ento uma vila, distante apenas alguns quilmetros da capital Rio de Janeiro. O conto se desenvolve em treze breves captulos, ao longo dos quais o alienista vai fazendo suas experimentaes cientificistas at que ele mesmo conclua pela necessidade de seu isolamento, visto que reconhece em si mesmo a nica pessoa cujas faculdades mentais encontram-se equilibradas, sendo ele, portanto, aquele que destoa dos demais, devendo, por isso, alienar-se. Texto 1 Captulo IV UMA TEORIA NOVA 1 Ao passo que D. Evarista, em lgrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos. 5 Um dia de manh, eram passadas trs semanas, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. Tratava-se de negcio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. 10 Crispim empalideceu. Que negcio importante podia ser, se no alguma notcia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um s dia. Assim se explicam os monlogos que fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez: Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesria? Bajulador, torpe bajulador! S para adular ao Dr Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda; 15aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amm a tudo, no ? A tens o lucro, biltre!. E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado um nada. To depressa ele orecebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde. 20 Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria prpria de um sbio, uma alegria abotoada de circunspeo at o pescoo. Estou muito contente, disse ele. Notcias do nosso povo?, perguntou o boticrio com a voz trmula. O alienista fez um gesto magnfico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experincia cientfica. Digo experincia, 25 porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ideia; nem a cincia outra coisa, Sr. Soares, seno uma investigao constante. Trata-se, pois, de uma experincia, mas uma experincia que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente. 30 Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticrio. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insnia abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na histria e em Itagua mas, como um raro esprito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itagua e refugiou-se na histria. Assim, apontou com especialidade alguns clebres, Scrates, que tinha um demnio familiar, Pascal, que via um 35abismo esquerda, Maom, Caracala, Domiciano, Calgula etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e at acrescentou sentenciosamente: A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a srio 40 Gracioso, muito gracioso!, exclamou Crispim Soares levantando as mos ao cu. Quanto ideia de ampliar o territrio da loucura, achou-a o boticrio extravagante; mas a modstia, principal adorno de seu esprito, no lhe sofreu confessar outra coisa alm de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itagua, que como as 45 demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notcia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Cmara, e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. 50 De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesistico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pblica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquele justamente que mais se opusera 55 criao da Casa Verde, desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticara um s desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime 60 mereciam o desprezo do nosso sculo. H melhor do que anunciar a minha ideia, pratic-la, respondeu o alienista insinuao do boticrio. E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor comear pela execuo. 65 Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu ele. Simo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: Suponho o esprito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola, que a razo; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, 70insnia e s insnia. O Vigrio Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que no chegava a entend-la, que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo colossal que no merecia princpio de execuo. Com a definio atual, que a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razo 75esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca? Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o desdm vinha casado comiserao; mas nenhuma palavra saiu de suas egrgias entranhas. 80 A cincia contentou-se em estender a mo teologia, com tal segurana, que a teologia no soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itagua e o universo beira de uma revoluo. ASSIS, Machado de.O Alienista. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponvel em: . Acesso em: 12/08/2019 . Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. [...] um dos vereadores [...] desfrutava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis, nunca domesticara um desses bichos; mas tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; afirmao perfeitamente falsa, mas s devido absoluta confiana no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime mereciam o desprezo do nosso sculo. (Texto 1, linhas 48 a 60) Considerando o trecho acima, analise as seguintes afirmaes: I. O trecho E dizem as crnicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavis danando no peito do vereador; (linhas 57 e 58) produz o efeito do humor por descrever uma situao absurda, que, no entanto, foi considerada pelas pessoas como verdadeira. II. No texto, a matraca foi retratada como uma forma segura e confivel de comunicao segundo a percepo da populao da cidade de Itagua. III. A frase Verdade, verdade, nem todas as instituies do antigo regime mereciam o desprezo do nosso sculo. (linhas 59 e 60) exprime a concordncia implcita do narrador com o menosprezo pelo uso da matraca. Em relao s afirmaes, est(o) correta(s):
(IME - 2019/2020 - 2 FASE) Naquele tempo, Itagua que como as demais vilas, arraiais e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa [...] (Texto 1, linhas 46 e 47) [...], para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mo. (Texto 1, linha 51) Acerca da etimologia dos vocbulos em negrito, sabido que so cognatos. Considerando essa afirmativa, assinale a alternativa em que uma das palavras tem origem distinta das demais.