(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 1) Leia a crnica Almaspenadas, de Olavo Bilac, publicada originalmente em 1902 Outro fantasma?... verdade: outro fantasma. J tardava. O Rio de Janeiro no pode passar muito tempo sem o seu lobisomem. Parece que tudo aqui concorre para nos impelir ao amor do sobrenatural [...]. Agora, j se no adormecem as crianas com histrias de fadas e de almas do outro mundo. Mas, ainda h menos de cinquenta anos, este era um povo de beatos [...]. [...] Os tempos melhoraram, mas guardam ainda um pouco dessa primitiva credulidade. Inventar um fantasma ainda um magnfico recurso para quem quer levar abom termo qualquer grossa patifaria. As almas simples vo propagando o terror, e, sob a capa e a salvaguarda desse temor, os patifes vo rejubilando. O novo espectro que nos aparece o de Catumbi. Comeou a surgir vagamente, sem espalhafato, pelo pacato bairro como um fantasma de grande e louvvel modstia. E to esbatido1passava o seu vulto na treva, to sutilmente deslizava ao longo das casas adormecidas que as primeiras pessoas que o viram no puderam em conscincia dizerse era duende macho ou duende fmea. [...] O fantasma no falava naturalmente por saber de longa data que pela boca que morrem os peixes e os fantasmas... Tambm, ningum lhe falava no por experincia, mas por medo.Porque, enfim, pode um homem ter nascido num sculo de luzes e de descrenas, e ter mamado o leite do liberalismo nos estafados seios da Revoluo Francesa, e no acreditar nem em Deus nem no Diabo e, apesar disso, sentir avoz presa na garganta, quando encontra na rua, a desoras2, uma avantesma3... Assim, um profundo mistrio cercava a existncia do lobisomem de Catumbi quando comearam de aparecer vestgios assinalados de sua passagem, no j pelas ruas, maspelo interior das casas. No vades agora crer que se tenham sumido, por exemplo, as hstias consagradas da igreja de Catumbi, ou que os empregados do cemitrio de S. Francisco de Paula tenham achado alguma sepultura vazia, ou que algum circunspecto pai de famlia, certa manh, ao despertar, tenha dado pela falta... da prpria alma. Nada disso. Os fenmenos eram outros. Desta casa sumiram-se as arandelas, daquela outra as galinhas, daquela outra as joias... E a polcia, finalmente, adquiriu a convico de que o lobisomem, para perptua e suprema vergonha de toda a sua classe, andava acumulando novos pecados sobre os pecados antigos, e dando-se prtica de excessos menos merecedores de exorcismos que de cadeia. Dizem as folhas4que a polcia, competentemente munida de bentinhos5e de revlveres, de amuletos e de sabres, assaltou anteontem o reduto do fantasma. Um jornal, dando conta da diligncia, disse que o delegado achou dentro da casa sinistra um velho pardieiro6que fica no topo de uma ladeira ngreme alguns objetos singulares que pareciam instrumentos pertencentes a gatunos. E acrescentou: alguns morcegos esvoaavam espavoridos, tentando apagar as velas acesas que os sitiantes7empunhavam. Esta nota de morcegos deve ser um chique romntico donoticiarista. No fundo da alma de todo o reprter h sempre um poeta... Vamos l! nestes tempos, que correm, j nem h morcegos. Esses feios quirpteros, esses medonhos ratos alados, companheiros clssicos do terror noturno, j no aparecem pelo bairro civilizado de Catumbi. Os animais, que esvoaavam espavoridos, eram sem dvida os franges roubados aos quintais das casas... Ai dos fantasmas! e mal dos lobisomens! o seu tempo passou. (Olavo Bilac.Melhores crnicas, 2005.) 1esbatido: de tom plido. 2a desoras: muito tarde. 3avantesma: alma do outro mundo, fantasma, espectro. 4folha: peridico dirio, jornal. 5bentinho: objeto de devoo contendo oraes escritas. 6pardieiro: prdio velho ou arruinado. 7sitiante: policial. A expresso sublinhada em No fundo da alma de todo o reprter h sempre um poeta... (5 pargrafo) exerce a mesma funo sinttica da expresso sublinhada em
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Para responder s questes de 06 a 08, leia o soneto de Lus de Cames. Enquanto quis Fortuna1que tivesse Esperana de algum contentamento, O gosto de um suave pensamento2 Me fez que seus efeitos escrevesse. Porm, temendo Amor3que aviso desse Minha escritura a algum juzo isento4, Escureceu-me o engenho5com tormento, Para que seus enganos no dissesse. vs que Amor obriga a ser sujeitos A diversas vontades, quando lerdes Num breve livro casos to diversos, Verdades puras so, e no defeitos6 E sabei que, segundo o amor tiverdes, Tereis o entendimento de meus versos (Lus de Cames. 20 sonetos, 2018.) 1 Fortuna: entidade mtica que presidia a sorte dos homens. 2 suave pensamento: sentimento amoroso. 3 Amor: entidade mtica que personifica o amor. 4 juzo isento: os inocentes do amor, aqueles que nunca se apaixonaram. 5 engenho: talento potico, inspirao. 6 defeitos: inverdades, fantasia. Segundo o eu lrico, Amor torna os amantes
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Para responder s questes de02a08, leia o trecho do dramaMacrio, de lvares de Azevedo. MACRIO (chega janela): mulher da casa! ol! de casa! UMA VOZ (de fora): Senhor! MACRIO: Desate a mala de meu burro e tragam-ma aqui... A VOZ: O burro? MACRIO: A mala, burro! A VOZ: A mala com o burro? MACRIO: Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca. A VOZ: O senhor o moo que chegou primeiro? MACRIO: Sim. Mas vai ver o burro. A VOZ: Um moo que parece estudante? MACRIO: Sim. Mas anda com a mala. A VOZ: Mas como hei de ir buscar a mala? Quer que v a p? MACRIO: Esse diabo doido! Vai a p, ou monta numa vassoura como tua me! A VOZ: Descanse, moo. O burro h de aparecer. Quando madrugar iremos procurar. OUTRA VOZ: Havia de ir pelo caminho do Nh Quito. Eu conheo o burro... MACRIO: E minha mala? A VOZ: No v? Est chovendo a potes!... MACRIO (fecha a janela): Malditos! (atira com uma cadeira no cho) O DESCONHECIDO: Que tendes, companheiro? MACRIO: No vedes? O burro fugiu... O DESCONHECIDO: No ser quebrando cadeiras que o chamareis... MACRIO: Porm a raiva... [...] O DESCONHECIDO: A mala no pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho? MACRIO: No! no! mil vezes no! No concebeis, uma perda imensa, irreparvel... era o meu cachimbo... O DESCONHECIDO: Fumais? MACRIO: Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher no me pergunteis se fumo! O DESCONHECIDO (d-lhe um cachimbo): Eis a um cachimbo primoroso. [...] MACRIO: E vs? O DESCONHECIDO: No vos importeis comigo. (tira outro cachimbo e fuma) MACRIO: Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome? O DESCONHECIDO: Perguntei-vos o vosso? MACRIO: O caso que preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estpido, pouco importa. Duas palavras s: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo. O DESCONHECIDO: Tocai! Sois um digno rapaz. (apertam a mo) MACRIO: Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento, s noites lmpidas, acho isso sumamente inspido. Os passarinhos sabem s uma cantiga. O luar sempre o mesmo. Esse mundo montono a fazer morrer de sono. O DESCONHECIDO: E a poesia? MACRIO: Enquanto era a moeda de ouro que corria s pela mo do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; no h mendigo, nem caixeiro de taverna que no tenha esse vintm azinhavrado. Entendeis-me? O DESCONHECIDO: Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo f-la... para ningum... (lvares de Azevedo.Macrio/Noite na taverna, 2002.) 1azinhavrado: coberto de azinhavre (camada de cor verde que se forma na superfcie dos objetos de cobre ou lato, resultante da corroso destes quando expostos ao ar mido). MACRIO: Desate a mala de meu burro e tragam-ma aqui... Na orao em que est inserido, o termo sublinhado um verbo que pede
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Para responder s questes de 06 a 08, leia o soneto de Lus de Cames. Enquanto quis Fortuna1que tivesse Esperana de algum contentamento, O gosto de um suave pensamento2 Me fez que seus efeitos escrevesse. Porm, temendo Amor3que aviso desse Minha escritura a algum juzo isento4, Escureceu-me o engenho5com tormento, Para que seus enganos no dissesse. vs que Amor obriga a ser sujeitos A diversas vontades, quando lerdes Num breve livro casos to diversos, Verdades puras so, e no defeitos6 E sabei que, segundo o amor tiverdes, Tereis o entendimento de meus versos (Lus de Cames. 20 sonetos, 2018.) 1 Fortuna: entidade mtica que presidia a sorte dos homens. 2 suave pensamento: sentimento amoroso. 3 Amor: entidade mtica que personifica o amor. 4 juzo isento: os inocentes do amor, aqueles que nunca se apaixonaram. 5 engenho: talento potico, inspirao. 6 defeitos: inverdades, fantasia. No soneto, o eu lrico dirige-se, mediante vocativo,
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 1) O tpico clssico do locus amoenus est bem exemplificado nos seguintes versos do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage:
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Carpe diem. um lema latino que significa, lato sensu, aproveita bem o dia ou aproveita o momento fugaz. Esta expresso tem paralelo em lnguas modernas, como no ingls: Take time while time is, for time will away. (Carlos Alberto de Macedo Rocha. Dicionrio de locues e expresses da lngua portuguesa, 2011. Adaptado.) Tal lema manifesta-se mais explicitamente nos seguintes versos de Fernando Pessoa:
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Para responder s questes de 09 a 11, leia a crnica Elegia do Guandu, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 2 de novembro de 1974. E se reverencissemos neste 2 de novembro os mortos do Guandu, que descem a correnteza, a caminho do mar o mar que eles no alcanam, pois encalham na areia das margens, e os urubus os devoram? Perdoai se apresento matria to feia, em dia de flores consagradas aos mortos queridos. Estes no so amados de ningum, ou o so de mnima gente. Seus corpos, no h quem os reclame, de medo ou seja l pelo que for. Se algum deles tem sorte de derivar pela restinga da Marambaia e ali recolhido por pescadores ah, peixe menos desejado ganha sepultura annima, que a piedade dos humildes providencia. Mas no prudente pescar mortos do Guandu: h sempre a perspectiva de interrogatrios que fazem perder o dia de trabalho, s vezes mais do que isso: a liberdade, que se confisca aos suspeitos e aos que explicam mal suas pescarias macabras. So marginais caados pela polcia ou por outros marginais, so suicidas, so acidentados? Difcil classific-los, se no trazem a marca registrada dos trucidadores ou estes sinais: mos amarradas, amarrado de vrios corpos, pesos amarrados aos ps. Estes ltimos so mortos fceis de catalogar, embora s se lhes vejam as cabeas em rodopio flor dgua, mas os que vm boiando e fluindo, fluindo e boiando, em sonho aqutico deslizante, estes desesperaram da vida, ou a vida lhes faltou de surpresa? Os mortos vo passando, procisso falhada. Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante. espetculo para se ver da janela de moradores de Itagua, assistentes ribeirinhos de novela de espaados captulos. Ver e no contar. Ver e guardar para conversas ntimas: Ontem, na tintura da madrugada, passaram trs garrafinhas. Eu vi, chamei a Teresa pra espiar tambm... Garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos ps, e no mais como ficou escrito em livros de cartrio. O garrafinha no 1 no diferente do garrafinha no 2 ou 3. Foram todos nivelados pelo Guandu. Como frascos vazios, de pequeno porte e nenhuma importncia, l vo rio abaixo, Nova Iguau abaixo, rumo do esquecimento das garrafas e dos crimes que cometeram ou no cometeram, ou dos crimes que neles foram cometidos. [...] O Guandu no responde a inquritos nem a reprteres. No distingue, carrega. No comenta, no julga, no reclama se lhe corrompem as guas; transporta. Em sua impessoalidade serve a desgnios vrios, favorece a vida que quer se desembaraar da morte, facilita a morte que quer se libertar da vida. Pela justia sumria, pelo absurdo, pelo desespero. Mas no ao Guandu que cabe dedicar uma elegia, aos mortos do Guandu, nos quais ningum pensa no dia de pensar os e nos mortos. Os criminosos, os no criminosos, os que se destruram, os que resvalaram. Mortos sem sepultura e sem lembrana. Trgicos e apagados deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal. (Carlos Drummond de Andrade. Os dias lindos, 2013.) Pode-se apontar na crnica um teor, sobretudo
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Examine a tirinha de Andr Dahmer Na tirinha, o personagem que fala ao microfone
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 1) Leia a cena inicial da comdia O novio, de Martins Pena. AMBRSIO: No mundo a fortuna para quem sabe adquiri-la. Pintam-na cega... Que simplicidade! Cego aquele que no tem inteligncia para v-la e a alcanar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da fortuna. Vontade forte, perseverana e pertincia so poderosos auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os meios, no consegue enriquecer-se? Em mim se v o exemplo. H oito anos, era eu pobre e miservel, e hoje sou rico, e mais ainda serei. O como no importa; no bom resultado est o mrito... Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me- e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os pobres... (Martins Pena. Comdias (1844-1845), 2007.) A fala de Ambrsio contm um elogio
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Para responder s questes de 09 a 11, leia a crnica Elegia do Guandu, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 2 de novembro de 1974. E se reverencissemos neste 2 de novembro os mortos do Guandu, que descem a correnteza, a caminho do mar o mar que eles no alcanam, pois encalham na areia das margens, e os urubus os devoram? Perdoai se apresento matria to feia, em dia de flores consagradas aos mortos queridos. Estes no so amados de ningum, ou o so de mnima gente. Seus corpos, no h quem os reclame, de medo ou seja l pelo que for. Se algum deles tem sorte de derivar pela restinga da Marambaia e ali recolhido por pescadores ah, peixe menos desejado ganha sepultura annima, que a piedade dos humildes providencia. Mas no prudente pescar mortos do Guandu: h sempre a perspectiva de interrogatrios que fazem perder o dia de trabalho, s vezes mais do que isso: a liberdade, que se confisca aos suspeitos e aos que explicam mal suas pescarias macabras. So marginais caados pela polcia ou por outros marginais, so suicidas, so acidentados? Difcil classific-los, se no trazem a marca registrada dos trucidadores ou estes sinais: mos amarradas, amarrado de vrios corpos, pesos amarrados aos ps. Estes ltimos so mortos fceis de catalogar, embora s se lhes vejam as cabeas em rodopio flor dgua, mas os que vm boiando e fluindo, fluindo e boiando, em sonho aqutico deslizante, estes desesperaram da vida, ou a vida lhes faltou de surpresa? Os mortos vo passando, procisso falhada. Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante. espetculo para se ver da janela de moradores de Itagua, assistentes ribeirinhos de novela de espaados captulos. Ver e no contar. Ver e guardar para conversas ntimas: Ontem, na tintura da madrugada, passaram trs garrafinhas. Eu vi, chamei a Teresa pra espiar tambm... Garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos ps, e no mais como ficou escrito em livros de cartrio. O garrafinha no 1 no diferente do garrafinha no 2 ou 3. Foram todos nivelados pelo Guandu. Como frascos vazios, de pequeno porte e nenhuma importncia, l vo rio abaixo, Nova Iguau abaixo, rumo do esquecimento das garrafas e dos crimes que cometeram ou no cometeram, ou dos crimes que neles foram cometidos. [...] O Guandu no responde a inquritos nem a reprteres. No distingue, carrega. No comenta, no julga, no reclama se lhe corrompem as guas; transporta. Em sua impessoalidade serve a desgnios vrios, favorece a vida que quer se desembaraar da morte, facilita a morte que quer se libertar da vida. Pela justia sumria, pelo absurdo, pelo desespero. Mas no ao Guandu que cabe dedicar uma elegia, aos mortos do Guandu, nos quais ningum pensa no dia de pensar os e nos mortos. Os criminosos, os no criminosos, os que se destruram, os que resvalaram. Mortos sem sepultura e sem lembrana. Trgicos e apagados deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal. (Carlos Drummond de Andrade. Os dias lindos, 2013.) O cronista dirige-se explicitamente a seu leitor no trecho:
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Para responder s questes de 11 a 14, leia o trecho do livro A solido dos moribundos, do socilogo alemo Norbert Elias. No mais consideramos um entretenimento de domingo assistir a enforcamentos, esquartejamentos e suplcios na roda. Assistimos ao futebol, e no aos gladiadores na arena. Se comparados aos da Antiguidade, nossa identificao com outras pessoas e nosso compartilhamento de seus sofrimentos e morte aumentaram. Assistir a tigres e lees famintos devorando pessoas vivas pedao a pedao, ou a gladiadores, por astcia e engano, mutuamente se ferindo e matando, dificilmente constituiria uma diverso para a qual nos prepararamos com o mesmo prazer que os senadores ou o povo romano. Tudo indica que nenhum sentimento de identidade unia esses espectadores queles que, na arena, lutavam por suas vidas. Como sabemos, os gladiadores saudavam o imperador ao entrar com as palavras Morituri te salutant (Os que vo morrer te sadam). Alguns dos imperadores sem dvida se acreditavam imortais. De todo modo, teria sido mais apropriado se os gladiadores dissessem Morituri moriturum salutant (Os que vo morrer sadam aquele que vai morrer). Porm, numa sociedade em que tivesse sido possvel dizer isso, provavelmente no haveria gladiadores ou imperadores. A possibilidade de se dizer isso aos dominadores alguns dos quais mesmo hoje tm poder de vida e morte sobre um sem-nmero de seus semelhantes requer uma desmitologizao da morte mais ampla do que a que temos hoje, e uma conscincia muito mais clara de que a espcie humana uma comunidade de mortais e de que as pessoas necessitadas s podem esperar ajuda de outras pessoas. O problema social da morte especialmente difcil de resolver porque os vivos acham difcil identificar-se com os moribundos. A morte um problema dos vivos. Os mortos no tm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema s para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doena, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrero; apenas eles podem prever seu prprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precaues especiais como indivduos e como grupos para proteger-se contra a ameaa da aniquilao. (A solido dos moribundos, 2001.) De acordo com o autor,
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 1) Leia a cena inicial da comdia O novio, de Martins Pena. AMBRSIO: No mundo a fortuna para quem sabe adquiri-la. Pintam-na cega... Que simplicidade! Cego aquele que no tem inteligncia para v-la e a alcanar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da fortuna. Vontade forte, perseverana e pertincia so poderosos auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os meios, no consegue enriquecer-se? Em mim se v o exemplo. H oito anos, era eu pobre e miservel, e hoje sou rico, e mais ainda serei. O como no importa; no bom resultado est o mrito... Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me- e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os pobres... (Martins Pena. Comdias (1844-1845), 2007.) O como no importa; no bom resultado est o mrito... O teor dessa fala aproxima-se do contedo da seguinte citao:
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Para responder s questes de 09 a 11, leia a crnica Elegia do Guandu, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 2 de novembro de 1974. E se reverencissemos neste 2 de novembro os mortos do Guandu, que descem a correnteza, a caminho do mar o mar que eles no alcanam, pois encalham na areia das margens, e os urubus os devoram? Perdoai se apresento matria to feia, em dia de flores consagradas aos mortos queridos. Estes no so amados de ningum, ou o so de mnima gente. Seus corpos, no h quem os reclame, de medo ou seja l pelo que for. Se algum deles tem sorte de derivar pela restinga da Marambaia e ali recolhido por pescadores ah, peixe menos desejado ganha sepultura annima, que a piedade dos humildes providencia. Mas no prudente pescar mortos do Guandu: h sempre a perspectiva de interrogatrios que fazem perder o dia de trabalho, s vezes mais do que isso: a liberdade, que se confisca aos suspeitos e aos que explicam mal suas pescarias macabras. So marginais caados pela polcia ou por outros marginais, so suicidas, so acidentados? Difcil classific-los, se no trazem a marca registrada dos trucidadores ou estes sinais: mos amarradas, amarrado de vrios corpos, pesos amarrados aos ps. Estes ltimos so mortos fceis de catalogar, embora s se lhes vejam as cabeas em rodopio flor dgua, mas os que vm boiando e fluindo, fluindo e boiando, em sonho aqutico deslizante, estes desesperaram da vida, ou a vida lhes faltou de surpresa? Os mortos vo passando, procisso falhada. Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante. espetculo para se ver da janela de moradores de Itagua, assistentes ribeirinhos de novela de espaados captulos. Ver e no contar. Ver e guardar para conversas ntimas: Ontem, na tintura da madrugada, passaram trs garrafinhas. Eu vi, chamei a Teresa pra espiar tambm... Garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos ps, e no mais como ficou escrito em livros de cartrio. O garrafinha no 1 no diferente do garrafinha no 2 ou 3. Foram todos nivelados pelo Guandu. Como frascos vazios, de pequeno porte e nenhuma importncia, l vo rio abaixo, Nova Iguau abaixo, rumo do esquecimento das garrafas e dos crimes que cometeram ou no cometeram, ou dos crimes que neles foram cometidos. [...] O Guandu no responde a inquritos nem a reprteres. No distingue, carrega. No comenta, no julga, no reclama se lhe corrompem as guas; transporta. Em sua impessoalidade serve a desgnios vrios, favorece a vida que quer se desembaraar da morte, facilita a morte que quer se libertar da vida. Pela justia sumria, pelo absurdo, pelo desespero. Mas no ao Guandu que cabe dedicar uma elegia, aos mortos do Guandu, nos quais ningum pensa no dia de pensar os e nos mortos. Os criminosos, os no criminosos, os que se destruram, os que resvalaram. Mortos sem sepultura e sem lembrana. Trgicos e apagados deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal. (Carlos Drummond de Andrade. Os dias lindos, 2013.) O termo sublinhado em Estes ltimos so mortos fceis de catalogar, embora s se lhes vejam as cabeas em rodopio flor dgua (4o pargrafo) pertence mesma classe gramatical do termo sublinhado em:
(UNESP - 2022 - 1 fase - DIA 2) Para responder s questes de 11 a 14, leia o trecho do livroA solido dos moribundos, do socilogo alemo Norbert Elias. No mais consideramos um entretenimento de domingo assistir a enforcamentos, esquartejamentos e suplcios na roda. Assistimos ao futebol, e no aos gladiadores na arena. Se comparados aos da Antiguidade, nossa identificao com outras pessoas e nosso compartilhamento de seus sofrimentos e morte aumentaram. Assistir a tigres e lees famintos devorando pessoas vivas pedao a pedao, ou a gladiadores, por astcia e engano, mutuamente se ferindo e matando, dificilmente constituiria uma diverso para a qual nos prepararamos com o mesmo prazer que os senadores ou o povo romano. Tudo indica que nenhum sentimento de identidade unia esses espectadores queles que, na arena, lutavam por suas vidas. Como sabemos, os gladiadores saudavam o imperador ao entrar com as palavras Morituri te salutant (Os que vo morrer te sadam). Alguns dos imperadores sem dvida se acreditavam imortais. De todo modo, teria sido mais apropriado se os gladiadores dissessem Morituri moriturum salutant (Os que vo morrer sadam aquele que vai morrer). Porm, numa sociedade em que tivesse sido possvel dizer isso, provavelmente no haveria gladiadores ou imperadores. A possibilidade de se dizer isso aos dominadores alguns dos quais mesmo hoje tm poder de vida e morte sobre um sem-nmero de seus semelhantes requer uma desmitologizao da morte mais ampla do que a que temos hoje, e uma conscincia muito mais clara de que a espcie humana uma comunidade de mortais e de que as pessoas necessitadas s podem esperar ajuda de outras pessoas. O problema social da morte especialmente difcil de resolver porque os vivos acham difcil identificar-se com os moribundos. A morte um problema dos vivos. Os mortos no tm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema s para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doena, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrero; apenas eles podem prever seu prprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precaues especiais como indivduos e como grupos para proteger-se contra a ameaa da aniquilao. (A solido dos moribundos, 2001.) No primeiro pargrafo, a impessoalidade da linguagem est bem exemplificada no trecho:
(UNESP - 2022 - 2 FASE)Sem dvida, o capital no tem ptria, e esta uma das suas vantagens universais que o fazem to ativo e irradiante. Mas o trabalho que ele explora tem me, tem pai, tem mulher e filhos, tem lngua e costumes, tem msica e religio. Tem uma fisionomia humana que dura enquanto pode. E como pode, j que a sua situao de raiz sempre a de falta e dependncia. Narrar a necessidade perfazer a forma do ciclo. Entre a conscincia narradora, que sustm a histria, e a matria narrvel, sertaneja, opera um pensamento desencantado, que figura o cotidiano do pobre em um ritmo pendular: da chuva seca, da folga carncia, do bem-estar depresso, voltando sempre do ltimo estado ao primeiro. a narrao, que se quer objetiva, da modstia dos meios de vida registrada na modstia da vida simblica. (Alfredo Bosi. Cu, inferno: ensaios de crtica literria e ideolgica, 2003. Adaptado.) O comentrio aplica-se com preciso obra